domingo, outubro 29, 2006

Ode à Cinderela, dão-dão-badalão


Sou mais feliz aqui. Aqui, longe do que escrevo, do que sonho sonhando-me e é assim que me visto e vou ao baile, longe de lá, aqui. Escritor de distâncias, mentiroso militante, adjectivador de passados, sou feliz assim. Dizem-me que tenho de ir , que tenho de regressar a mim. Onde, se não quero sair daqui, capoeira dos meus ovos, horta do melhor de mim? Não, não vou; eu ficciono, não vejo e relato eu sonho e escrevo, construo as paisagens dos meus quadros e orgulho-me das cores que o meu pincel inventa. Nunca, em mim, encontrei pingo de verdade que valesse a pena ser contado cru, sem o refogado da ficção e o gratinado da palavra bela, essa mentirosa, amante que me desgraça e enlouquece, droga de que me sirvo sem parcimónia ou tento, e que gasto às bisnagas nos meus cenários. Por isso sou feliz aqui e assim. Longe de e longe de mim minorca borralheiro, dedos ágeis quando ninguém os vê, salão de baile aberto em noite de verão e a carruagem de abóbora lá fora à espera. Ficção, minha dança, meu passodoble privado onde rio e rodopio como lá nunca me atrevi ou sequer tentei, minha ‘vernissage’ contínua de vida feliz, mentira grata de bom palato, suco que espremo e único alimento que vitamina o existir da abóbora carruagem. Autófago? A orquestra toca e a resposta não me interessa, a caneta é que é autófaga e baila-se com o que há.
Eu disse mais feliz? mais feliz aqui? porquê o mais se eu não era feliz , se não recebia mais que os pingos de ilusão da dita, parco quinhão que acreditamos justo e suficiente, desacreditando-nos, quando fazemos um intervalo e paramos de chorar a igualdade dos dias sem a luz? Não, já disse. Vim para ficar, sou mais feliz aqui e no itálico está a diferença que sorri e ilude, matreira ficção de mim, eu construtor e decorador de condomínios privados, sequestrador de ilusões, fugitivo da derrota do anónimo cinzento das horas vagas, as ocas, vazias de caneta e sem um olhar perdido no nada, esses lapsos de tristeza que teimam em persistir e se enchem de banalidades, ofensivamente chamada de vida útil à Família e à Madastra, à Princesa e à Sociedade. Àgua-rás em cima dela, borrão que o sabão da ficção apaga.
Dão… Dão… Badalão… As badaladas. Sei lá se doze, não quero contá-las. Sei que conta a lenda que, quando terminarem, a abóbora vai-se embora. E eu tenho medo de twistar sozinho, trocar o passo enlaçando o nada, sozinho no meio do salão ouvindo as badaladas, apeado da ilusão onde não há passos trocados. “One man show”, o qu’é isso? Eu não, não. Sou mais feliz aqui, na mesa de canto escrevendo os passos que não sei nem quero dar, enleando sonhos, bailando fantasias com rendas e bordados, ao lado o jarro de devaneios da casa, caneta-copo na mão. Bailando, dão dão badalão. Simulando, dão dão badalão. Ouse-se atrever sapatinho de verniz nesta dança, daqueles que de tão polidos são espelhos aos donos dos trambolhos que os calçam, e a ficção termina logo aí pois não há imaginação que vença a luz do espelho. Assim como a do baile, o da carruagem e das badaladas. Lá, nunca soube dançar, contar o inventar, esta aldraba de luxo a coxo de danças com passo errante além do daltónico regurgitar das anónimas banalidades, essa nudez vazia de ficções, tinta que se não gasta pois dela nada há a narrar, quanto mais bailar. Por isso minto, invento, ficciono, lanço-me à folha branca como o desesperado à oportunidade, o sequioso à fonte, o apeado à carruagem.
Dão dão badalão, mais um copo mais uma folha, mais um prazer escrevendo o doce nada, único bailarico da minha criação onde me lembro de dar um pezinho de dança.

(foto daqui)

3 Comments:

Blogger th said...

Pois como eu já disse: É quando escreves assim, que eu te encontro, neste baile bailado onde brincas com os passos e conduzes as palavras num compasso muito teu.
a amiga de sempre, comentadora de sofá (que eu não sei lá muito bem se é um cumprimento ou uma ironia...lol), th

1:50 da manhã  
Blogger Carlos Gil said...

;-)

1:57 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Parabéns! - muf'.

1:02 da manhã  

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