"Cromos" I: as vidas do Roque
Há uma semana que não edito nada e sem nada no bolso que valha a pena mostrar: muitas dúzias de linhas começadas mas muito justamente abandonadas. Há pouco, e por causa duma conversa sobre histórias e estorietas locais, lembrei-me do "as vidas do Roque", já coisa para quase um ano. Fui-o buscar e entretive-me a aligeirar o texto. Republico-o assim. À falta de 'originais' sai mais uma rodada para a mesa do canto, digo, para a mesa do Roque:
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"Ao balcão está o Roque que eu já não via há meses. Está completamente bêbado e oscila perigosamente, os olhos vítreos vagueando pela sala quase vazia em busca de quem lhe dê atenção. Por vezes eleva o seu falar sozinho e o tema recorrente percebe-se na algaraviada bêbada em que se perde: a guerra colonial. Há mais de vinte anos que conheço o Roque e até já lhe aturei algumas bebedeiras e o tema não varia, sempre a guerra colonial. Diz-se por aqui que ele veio de África maluco, apanhadinho da cabeça. Que começou a beber desalmadamente quando foi desincorporado após os anos de Força Aérea. Eu, que vim depois, já o conheci assim. Bêbado e louco. Quantas estórias há para contar acerca do Roque, das maluqueiras do Roque… «Sentido! É pá! Sentido!» O vozeirão eleva-se e a mão volta a agarrar o copo. Ele não precisa de beber mais para ficar bêbado. Será um dos tais doentes do álcool que com dois copos ficam logo estragados, alcoolizados. E, hoje e pelo que nele vejo, a conta já se perdeu muito para além do que os seus passos dançantes costumam tropeçar.
Foi funcionário público e trabalhava em Santarém no Instituto de Emprego. Calhava que, querendo falar-se com ele no período pós almoço esse burocrático intuito só era possível indo ao seu gabinete público nessa parte nobre do horário à causa: a taberna do Quinzena, lá perto, onde ele e o Madeira, seu colega de ofício e de amores líquidos, almoçavam religiosamente todos os santos dias de labuta estendendo os digestivos ao correr do relógio de ponto. Era lá, no Quinzena, entre pataniscas e jaquinzinhos mais um jarrito de tinto, que se tratava de certidões, etc. Depois reformou-se e o Madeira, consta, não lhe resistiu muito mais e tornou-se abstémio por falta de quórum. Há quem diga que a sorte do Madeira foi o Roque ter-se reformado: curou-se desse afogar inevitável para que caminhava todas as tardes de segunda a sexta-feira. E a sorte do Roque, onde é que se perdeu? em que savana ou picada a deixou?
O Quinzena lá continua, a mobília e a fauna renovam-se mas sempre com aquele ar de tasca e de bêbados castiços que faz as delícias dos turistas pelas bandas scalabitanas. Certa vez até mereceu honras de visita e de almoço dum Presidente então no activo, por acaso o tal que quis repetir a dose sem ter colhido muitos entusiasmos à volta da ideia. Quem sabe se, com nova visita ao Quinzena, um magusto à maneira e meia litrada no bucho, não teria reconsiderado intentos e tornara-se de vez colega do Madeira e do Roque... – falo de reformas, é claro.
Que me lembre a última vez que me rira com o Roque foi após ter saído no “Almeirinense” uma reportagem sobre o seu julgamento por embriaguês ao volante, com uma daquelas taxas que faz salivar jornalistas. Dizia que no ilustre libelo constava que o dito cujo se arrependera de todos os males cometidos aqui e além mar, jurara pelos netos que beber era verbo do passado, e comprometera-se a deixar de conduzir durante os meses de castigo que, sabia-o e declarava aceitar, lhe calhariam em sentença: uma jóia de arrependimento, um exemplo social. Ora bem, naquela tarde de domingo estávamos no passeio em frente ao café a remoer o almoço e no dolce fare niente, quando passa o Renault 5 do Roque com o próprio, claro está, ao volante. Pelo caminho que seguia ia para a bola e a gargalhada foi geral em todos os que assistimos à sua gloriosa passagem, indiferente ao trânsito em julgado de sentenças que ignoram os grandes e os pequenos prazeres da vida. Sabendo nós que o campo de futebol estava e está entrincheirado entre as tascas do Batista e do Botas, pelo sim pelo não servido com bar interno e mais uns outsiders bem localizados na vizinhança, o resultado do jogo era público e não constituía segredo: a pretexto de vitória, derrota ou empate a bebedeira era certa e o Roque não abandonaria o campo sem ser em glória e ao volante do velho chaço!
Neste entretanto em que conto o que dele me vou lembrando ele já recolheu à rua e pelo sentido dos passos vai para casa. Se não houver desvios não há riscos pelo caminho pois são ruas de pouco movimento e ele não mora longe, sem cafés ou tabernas no trilho mais directo. Poderá aproveitar a passagem pela igreja e nela recolher cansaços e montar apeadeiro até chegar à cama. Sei lá... "O Roque é maluco" (sabe-o qualquer um que aqui more) e os caminhos dos loucos são tão imprevisíveis como criativos... Conta-se - de tal não sei pois sou ainda novo por aqui, que, certa vez, vinha o Roque de Santarém montado no seu belo carrinho e numa bebedeira não menos bonita quando, à saída da velha ponte, deu de caras com uma operação ‘stop’ da GNR local. Ora a última das suas vontades seria parar e portanto esmerou-se em acelerar a caminho de Almeirim, crente nas delícias da protecção da sua terra de sempre e, também, em que facilmente venceria o despique como o tradicional velho e gasto jeep dos gêeneérres. Dito e feito, cortou meta isoladíssimo e assim passou em frente ao decano dos cafés da terra, o ‘Império’, onde nas noites de verão se juntam na esplanada os grupos de sempre, clientes da casa desde o tempo em que lá iam comprar pirolitos. O Roque achou que a vitória estava insonsa e não foi de modas: no cruzamento em frente à esplanada tratou dum vistoso peão e sentou-se em cima do capôt, braços cruzados e cara patibular fixa na linha negra da estrada que vem da Tapada, à espera dos derrotados, os eternos segundos classificados desta sua velha competição que lhe vítrea e liquefaz o olhar.
Não me lembro se me contaram o desfecho mas ele também pouco interessa. Não é uma multa ou uma noite mal dormida que destrói o mito dum “cromo” local. A pequena história desta terra também passa pelas suas figuras típicas, “os cromos”, e o Roque é um deles para uma geração. O pormenor da guerra colonial, infelizmente, pouco é referido. Justa ou injustamente não sei, pois se há quem garanta que na origem do alcoolismo está um drama familiar dos mais traumáticos, não há quem possa garantir que se ele tivesse feito tropa na Ajuda ou no arsenal do Alfeite não seria o que hoje militantemente é. Estala-me a dúvida sempre que o vejo em seu estado de graça, o linguarejar de bêbado gritando: «Sentido! é hoje!» e o olhar perdido não sei onde, olhos brilhantes e fixos, alcoolicamente fixos na merda do passado que teve de gramar. Boa sorte Roque. Que encontres sempre facilmente o caminho para a tua cama, para o teu sossego: mata de vez a tua guerra e esquece a outra, seja ela qual seja. Terão sido siamesas, acredito. Mas tantos anos e copos depois está na altura de enterrares ambas, e nem mais uma gota por favor."
Foi funcionário público e trabalhava em Santarém no Instituto de Emprego. Calhava que, querendo falar-se com ele no período pós almoço esse burocrático intuito só era possível indo ao seu gabinete público nessa parte nobre do horário à causa: a taberna do Quinzena, lá perto, onde ele e o Madeira, seu colega de ofício e de amores líquidos, almoçavam religiosamente todos os santos dias de labuta estendendo os digestivos ao correr do relógio de ponto. Era lá, no Quinzena, entre pataniscas e jaquinzinhos mais um jarrito de tinto, que se tratava de certidões, etc. Depois reformou-se e o Madeira, consta, não lhe resistiu muito mais e tornou-se abstémio por falta de quórum. Há quem diga que a sorte do Madeira foi o Roque ter-se reformado: curou-se desse afogar inevitável para que caminhava todas as tardes de segunda a sexta-feira. E a sorte do Roque, onde é que se perdeu? em que savana ou picada a deixou?
O Quinzena lá continua, a mobília e a fauna renovam-se mas sempre com aquele ar de tasca e de bêbados castiços que faz as delícias dos turistas pelas bandas scalabitanas. Certa vez até mereceu honras de visita e de almoço dum Presidente então no activo, por acaso o tal que quis repetir a dose sem ter colhido muitos entusiasmos à volta da ideia. Quem sabe se, com nova visita ao Quinzena, um magusto à maneira e meia litrada no bucho, não teria reconsiderado intentos e tornara-se de vez colega do Madeira e do Roque... – falo de reformas, é claro.
Que me lembre a última vez que me rira com o Roque foi após ter saído no “Almeirinense” uma reportagem sobre o seu julgamento por embriaguês ao volante, com uma daquelas taxas que faz salivar jornalistas. Dizia que no ilustre libelo constava que o dito cujo se arrependera de todos os males cometidos aqui e além mar, jurara pelos netos que beber era verbo do passado, e comprometera-se a deixar de conduzir durante os meses de castigo que, sabia-o e declarava aceitar, lhe calhariam em sentença: uma jóia de arrependimento, um exemplo social. Ora bem, naquela tarde de domingo estávamos no passeio em frente ao café a remoer o almoço e no dolce fare niente, quando passa o Renault 5 do Roque com o próprio, claro está, ao volante. Pelo caminho que seguia ia para a bola e a gargalhada foi geral em todos os que assistimos à sua gloriosa passagem, indiferente ao trânsito em julgado de sentenças que ignoram os grandes e os pequenos prazeres da vida. Sabendo nós que o campo de futebol estava e está entrincheirado entre as tascas do Batista e do Botas, pelo sim pelo não servido com bar interno e mais uns outsiders bem localizados na vizinhança, o resultado do jogo era público e não constituía segredo: a pretexto de vitória, derrota ou empate a bebedeira era certa e o Roque não abandonaria o campo sem ser em glória e ao volante do velho chaço!
Neste entretanto em que conto o que dele me vou lembrando ele já recolheu à rua e pelo sentido dos passos vai para casa. Se não houver desvios não há riscos pelo caminho pois são ruas de pouco movimento e ele não mora longe, sem cafés ou tabernas no trilho mais directo. Poderá aproveitar a passagem pela igreja e nela recolher cansaços e montar apeadeiro até chegar à cama. Sei lá... "O Roque é maluco" (sabe-o qualquer um que aqui more) e os caminhos dos loucos são tão imprevisíveis como criativos... Conta-se - de tal não sei pois sou ainda novo por aqui, que, certa vez, vinha o Roque de Santarém montado no seu belo carrinho e numa bebedeira não menos bonita quando, à saída da velha ponte, deu de caras com uma operação ‘stop’ da GNR local. Ora a última das suas vontades seria parar e portanto esmerou-se em acelerar a caminho de Almeirim, crente nas delícias da protecção da sua terra de sempre e, também, em que facilmente venceria o despique como o tradicional velho e gasto jeep dos gêeneérres. Dito e feito, cortou meta isoladíssimo e assim passou em frente ao decano dos cafés da terra, o ‘Império’, onde nas noites de verão se juntam na esplanada os grupos de sempre, clientes da casa desde o tempo em que lá iam comprar pirolitos. O Roque achou que a vitória estava insonsa e não foi de modas: no cruzamento em frente à esplanada tratou dum vistoso peão e sentou-se em cima do capôt, braços cruzados e cara patibular fixa na linha negra da estrada que vem da Tapada, à espera dos derrotados, os eternos segundos classificados desta sua velha competição que lhe vítrea e liquefaz o olhar.
Não me lembro se me contaram o desfecho mas ele também pouco interessa. Não é uma multa ou uma noite mal dormida que destrói o mito dum “cromo” local. A pequena história desta terra também passa pelas suas figuras típicas, “os cromos”, e o Roque é um deles para uma geração. O pormenor da guerra colonial, infelizmente, pouco é referido. Justa ou injustamente não sei, pois se há quem garanta que na origem do alcoolismo está um drama familiar dos mais traumáticos, não há quem possa garantir que se ele tivesse feito tropa na Ajuda ou no arsenal do Alfeite não seria o que hoje militantemente é. Estala-me a dúvida sempre que o vejo em seu estado de graça, o linguarejar de bêbado gritando: «Sentido! é hoje!» e o olhar perdido não sei onde, olhos brilhantes e fixos, alcoolicamente fixos na merda do passado que teve de gramar. Boa sorte Roque. Que encontres sempre facilmente o caminho para a tua cama, para o teu sossego: mata de vez a tua guerra e esquece a outra, seja ela qual seja. Terão sido siamesas, acredito. Mas tantos anos e copos depois está na altura de enterrares ambas, e nem mais uma gota por favor."
2 Comments:
São vidas complicadas que dão lugar a histórias ricas, bem contadas como esta. É material humano que, bem aproveitado, pode dar um bom livro de contos. Pensa nisso.
Beijo, th
Roque é um daqueles Almeirinenses, Portugueses que nunca serão reconhecidos. Ele foi um jovem que tudo deu .. a sua própria vida.. por aquilo que lhe garantiam ser o DEVER .. PORTUGAL
ANTÓNIO ROQUE - Almeirinense, um dos mais reconhecidos militares paraquedistas, honra, ética e solidariedade..mas maltratado por um PAÍS que não reconhece o mal que causou a tantos jovens..
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