Lourenço Marques: eu e a cidade (I)
(...)
Lourenço Marques era o centro do mundo, latitude e longitude de mim. Além dela, cidade, em miúdo sonhava a selva e os seus mistérios, filhos de romances húmus de imaginações, e quando os calções deram lugar às calças à boca-de-sino e estas se motorizaram descobri que a temida selva das tardes lidas em tantas páginas afinal eram planícies imensas de capim, picadas que só não eram intermináveis porque desistia de as seguir e acoitava-me em sombras olhando a felicidade de turistar o mato, praias que só soube quão belas eram quando as perdi, vilas pachorrentas com o pé das árvores caiado de branco e onde as portas e as janelas tinham todas redes mosquiteiras, aldeias de caniço à sombra de mangueiras onde a chegada da minha motorizada era o acontecimento do dia e fazia gritar de excitação os miúdos, cantinas à beira do alcatrão onde dessedentava o arrojo, o mundo além do meu mundo, cidade. Dela partia e a ela tornava, silhueta e sombra queridas, meu ninho e refúgio, minha cidade, única metrópole que me falava ciciando-me promessas de mais assim, eterno assim, romance de enredo empolgante que lia com sofreguidão expectante das páginas do dia e da noite seguintes, numa insónia colonial mesclada pela névoa doce dos anos do crescer.
Cidade. As picadas citadinas eram avenidas imensas ou ruas recantos, entre prédios gigantes que agigantavam o horizonte e tornavam brilhante o rubro das acácias e cintilante o azul dos jacarandás ou velhas moradias onde nas frestas das janelas se viam os escombros das redes mosquiteiras, brasões do passado em guaritas de modernidade, assim era Lourenço Marques cidade cimento, mausoléu imperial, mágico sepulcro da infância e juventude e que em culto de memória venero, como se beber da taça da fonte da juventude fosse inócuo e tão seguro como ler um romance que fala do passado, certo que a estante o arquivará.
Filho de colonos modernos, da leva que despida do rótulo não prescindia do espírito do estatuto, aportei ao cais Gorjão com os olhos abertos de espanto e uma curiosidade sem fim: sete anos, os especiais sete anos, tempo em que a escola era encanto e não rotina a abreviar sempre que possível, tempo para começar a acreditar nos sonhos que as letras contavam, tempo de descobertas dos mundos imaginados. O cenário ideal: afinal o sonho estava além presente, seja ele vestido das fascinações urbanas ou lido e adivinhado nas feitiçarias rurais, lá depois da linha de horizonte onde os romances de aventuras se escrevem. Porque a vida calha assim morava na terra de ninguém, naquele vasto e ignorado hiato entre uma e outra cidade, ricos caniço e cimento, ricos no tanto que genuinamente me davam. Da pobreza? li esse romance depois, então estava ocupado em crescer e a banda desenhada onde o sol se punha com raios e matizes que atraíam era irresistível, ocupado a tempo inteiro em turistar de mim além do tal horizonte, viver antes que a biblioteca fosse necessariamente outra. Naquele pedaço de tanto em que uma cidade morria em tentáculos de cimento que penetravam na urbe do seu outro lado do espelho, lá onde os transportes colectivos são tão apinhados como os de qualquer outro subúrbio onde o meio-termo junta a cor aos cifrões, nessa densa picada urbanizada onde as árvores não estavam caiadas de branco e as redes mosquiteiras cumpriam a sua histórica missão de falar aos visitantes do atraso social, na arriba entre a Mafalala e o Alto-Maé assentei dias e noites, amigos, paixões, birras ou brincadeiras, vivi os primeiros sonhos eróticos sonhando com a prostituta da barraca ao lado e não com a gentil menina da flat do quarto andar, assim vivi, aprendi e cresci durante uns sete, oito anos, até família e mobília mudarem-se para dentro da outra cidade, e demorei a sentir o Malhangalene como terras e passeios que pisava com segurança, meu bairro ‘minha cidade’. Sentia-me em visita permanente, como que em quintal vizinho onde se brinca antes de, quando o descanso reclama pela segurança-mãe, acamar os repousos lá ao lado, ‘em casa’, e amanhã há mais. Foi uma época de viragem, aos quinze já se pensa que a masturbação pode ser substituída e já se viram umas fotos sobre o assunto, tem-se vergonha de se ter usado calções até há tão pouco tempo e já se rouba um cigarro com mais descaramento, odeia-se a escola e aspira-se à independência. A cidade fascínio passou a ser vivida por dentro, perderam-se os tempos em que o carro do pai adormecia à porta de qualquer evento com presença arrancada a ferros, mas sob condição de protector transporte personalizado, paternal. De repente os transportes públicos eram de maior oferta e confortavelmente mais vazios, a ida aos jogos nocturnos de basquetebol ou de hóquei em patins às quartas e sábados à noite acelerou-se tão depressa como a bainha dos calções descia, vestia as calças da cidade-toda e corria pelos passeios no passo alegre de quem ascendeu a vizinho das lojas e das montras onde os fascínios se vendem, acreditando que um dia poderia comprá-los todos, sonhando Lourenço Marques como minha mega e privada diversão.
Em casa era como em todas as casas, uns dias assim e outros assim-assim, a minha disciplina escolar rondava a fraca percentagem da do aproveitamento académico e rapidamente foi imposto um regime misto, aulas nocturnas e emprego assegurado por providências paternas, no louvável intento de dar um rumo de avenida à esburacada picada do meu futuro. Nem meio ano depois estava a sinalizar a compra duma motorizada, passado outro arrendava a meias um apartamento com o grande amigo de escola e agora também um colega de serviço, o Luís, igualmente exilado para os redentores rigores da vida de trabalhador-estudante por sagazes providências paternas, que casavam na perfeição com a certeza de que qualquer actividade que fosse nocturna era sempre mais atraente que a sua versão ensolarada, mais adequada para outras coisas como por exemplo trabalhar e ganhar um ordenado, sacra independência económica e intuitiva mãe de todas as outras. Até o fim da masturbação se tornava mais visível no sedutor húmido horizonte, graças à motorizada e às calças novas, o bigode, a barba e a mosca crescendo dia-a-dia, e importantes lecas no bolso. A farsa das aulas nocturnas durou um ano, num instituto particular no quarteirão entre o Rádio Clube e a 24 de Julho, perto do consulado britânico e da cervejaria ‘Cortiço’, e rapidamente o pater familias anuiu a que o “horário único” laboral que tinha, das sete à uma, passasse a pormenor entre todo o restante, contínuo e folgazão relógio q.b. conforme ventos e humores. Vida escolar assim abreviada e supunha-se terminada, crente que por tal términos passava o desejado fim do crescer, rejubilava pessoalmente cada etapa vencida. Passava tardes no cinema e vagueando pelos cafés, muitos que já frequentava enquanto cumpri outro ritual da época que era neles estudar, principalmente em vésperas de pontos e assim pretexto não contestado familiarmente para uma saída nocturna em dia de semana. Assim que tive a motorizada havia tardes em que ia à praia ou perdia-me em longos passeios pela cidade, descobrindo-lhe as curvas e as intimidades, o que inclui os desvarios dos idílicos e insatisfeitos quinze anos, as atracções pelos proibidos da moda, rebeldia igual a ontem hoje e amanhã.
Cidade. As picadas citadinas eram avenidas imensas ou ruas recantos, entre prédios gigantes que agigantavam o horizonte e tornavam brilhante o rubro das acácias e cintilante o azul dos jacarandás ou velhas moradias onde nas frestas das janelas se viam os escombros das redes mosquiteiras, brasões do passado em guaritas de modernidade, assim era Lourenço Marques cidade cimento, mausoléu imperial, mágico sepulcro da infância e juventude e que em culto de memória venero, como se beber da taça da fonte da juventude fosse inócuo e tão seguro como ler um romance que fala do passado, certo que a estante o arquivará.
Filho de colonos modernos, da leva que despida do rótulo não prescindia do espírito do estatuto, aportei ao cais Gorjão com os olhos abertos de espanto e uma curiosidade sem fim: sete anos, os especiais sete anos, tempo em que a escola era encanto e não rotina a abreviar sempre que possível, tempo para começar a acreditar nos sonhos que as letras contavam, tempo de descobertas dos mundos imaginados. O cenário ideal: afinal o sonho estava além presente, seja ele vestido das fascinações urbanas ou lido e adivinhado nas feitiçarias rurais, lá depois da linha de horizonte onde os romances de aventuras se escrevem. Porque a vida calha assim morava na terra de ninguém, naquele vasto e ignorado hiato entre uma e outra cidade, ricos caniço e cimento, ricos no tanto que genuinamente me davam. Da pobreza? li esse romance depois, então estava ocupado em crescer e a banda desenhada onde o sol se punha com raios e matizes que atraíam era irresistível, ocupado a tempo inteiro em turistar de mim além do tal horizonte, viver antes que a biblioteca fosse necessariamente outra. Naquele pedaço de tanto em que uma cidade morria em tentáculos de cimento que penetravam na urbe do seu outro lado do espelho, lá onde os transportes colectivos são tão apinhados como os de qualquer outro subúrbio onde o meio-termo junta a cor aos cifrões, nessa densa picada urbanizada onde as árvores não estavam caiadas de branco e as redes mosquiteiras cumpriam a sua histórica missão de falar aos visitantes do atraso social, na arriba entre a Mafalala e o Alto-Maé assentei dias e noites, amigos, paixões, birras ou brincadeiras, vivi os primeiros sonhos eróticos sonhando com a prostituta da barraca ao lado e não com a gentil menina da flat do quarto andar, assim vivi, aprendi e cresci durante uns sete, oito anos, até família e mobília mudarem-se para dentro da outra cidade, e demorei a sentir o Malhangalene como terras e passeios que pisava com segurança, meu bairro ‘minha cidade’. Sentia-me em visita permanente, como que em quintal vizinho onde se brinca antes de, quando o descanso reclama pela segurança-mãe, acamar os repousos lá ao lado, ‘em casa’, e amanhã há mais. Foi uma época de viragem, aos quinze já se pensa que a masturbação pode ser substituída e já se viram umas fotos sobre o assunto, tem-se vergonha de se ter usado calções até há tão pouco tempo e já se rouba um cigarro com mais descaramento, odeia-se a escola e aspira-se à independência. A cidade fascínio passou a ser vivida por dentro, perderam-se os tempos em que o carro do pai adormecia à porta de qualquer evento com presença arrancada a ferros, mas sob condição de protector transporte personalizado, paternal. De repente os transportes públicos eram de maior oferta e confortavelmente mais vazios, a ida aos jogos nocturnos de basquetebol ou de hóquei em patins às quartas e sábados à noite acelerou-se tão depressa como a bainha dos calções descia, vestia as calças da cidade-toda e corria pelos passeios no passo alegre de quem ascendeu a vizinho das lojas e das montras onde os fascínios se vendem, acreditando que um dia poderia comprá-los todos, sonhando Lourenço Marques como minha mega e privada diversão.
Em casa era como em todas as casas, uns dias assim e outros assim-assim, a minha disciplina escolar rondava a fraca percentagem da do aproveitamento académico e rapidamente foi imposto um regime misto, aulas nocturnas e emprego assegurado por providências paternas, no louvável intento de dar um rumo de avenida à esburacada picada do meu futuro. Nem meio ano depois estava a sinalizar a compra duma motorizada, passado outro arrendava a meias um apartamento com o grande amigo de escola e agora também um colega de serviço, o Luís, igualmente exilado para os redentores rigores da vida de trabalhador-estudante por sagazes providências paternas, que casavam na perfeição com a certeza de que qualquer actividade que fosse nocturna era sempre mais atraente que a sua versão ensolarada, mais adequada para outras coisas como por exemplo trabalhar e ganhar um ordenado, sacra independência económica e intuitiva mãe de todas as outras. Até o fim da masturbação se tornava mais visível no sedutor húmido horizonte, graças à motorizada e às calças novas, o bigode, a barba e a mosca crescendo dia-a-dia, e importantes lecas no bolso. A farsa das aulas nocturnas durou um ano, num instituto particular no quarteirão entre o Rádio Clube e a 24 de Julho, perto do consulado britânico e da cervejaria ‘Cortiço’, e rapidamente o pater familias anuiu a que o “horário único” laboral que tinha, das sete à uma, passasse a pormenor entre todo o restante, contínuo e folgazão relógio q.b. conforme ventos e humores. Vida escolar assim abreviada e supunha-se terminada, crente que por tal términos passava o desejado fim do crescer, rejubilava pessoalmente cada etapa vencida. Passava tardes no cinema e vagueando pelos cafés, muitos que já frequentava enquanto cumpri outro ritual da época que era neles estudar, principalmente em vésperas de pontos e assim pretexto não contestado familiarmente para uma saída nocturna em dia de semana. Assim que tive a motorizada havia tardes em que ia à praia ou perdia-me em longos passeios pela cidade, descobrindo-lhe as curvas e as intimidades, o que inclui os desvarios dos idílicos e insatisfeitos quinze anos, as atracções pelos proibidos da moda, rebeldia igual a ontem hoje e amanhã.
Então em absoluto, Lourenço Marques era o centro do meu mundo e o romance de viver era como se lido às escondidas, à procura das páginas proibidas, lânguidos beijos e múltiplas paixões escandalosamente contadas na sua sagração carnal, mas o pôr-do-sol benzia a inocência de todos os pecados se visto do jardim perfeito e com o forte aroma da suruma circulando de mão em mão, o horizonte brilhando em cores especiais nessa paleta única do ocaso do dia africano. Assim eu namorava a cidade.
(...)
(extracto do meu livro nunca acabado, parte passada a acta esta tarde)
8 Comments:
"e quando os calções deram lugar às calças à boca-de-sino e estas se motorizaram descobri que a temida selva das tardes lidas em tantas páginas afinal eram planícies imensas de capim"...
bela acta esta!!
mmanso
Do melhor que já li escrito por si. Texto de grande beleza. Um conselho: viaje pelo Norte do Save, por terras tropicais, não inscrito no seu passado mas "mais" África e sobre o qual espero lê-lo no futuro. MR
Livra-te, esta escrita de tanta qualidade é para chegar à última página e PUBLICAR!!!, um beijo, gostei muito, IO.
"Poça, como eu gostava de ser poeta!" Skarmeta.
A minha admiração é assim, do tamanho do carteiro do Pablo Neruda!
Beijinhos Xil!
Os meus comentários da tarde cairam todos, e neles eu dizia mais ou menos o que aqui foi dito e que eu mandei em mail para o Gil.
Esta paixão é um relato da juventude numa cidade especial, escrito por uma pessoa especial.
Beijo, th
Obrigada pelo telefonema.
Depois de ler e reler e ir ler mais vezes, quero dizer-te que quero mais e mais e que quando for grande gostava de escrever como tu.
Um abracinho apertado.
LUh
(fui forçado a 'remover' um comentário - que o não era: spam, e do mau, apelando a xenoesquisitices, coisas para as quais já não tenho paciência de ouvir na minha própria casa)
Malta, estou vaidoso com os vossos incentivos. Só em absurdo nã reconhecia o texto como bem feito, quando o parei. É engraçado mas comecei-o em volta da primeira frase, do 'LM era o mundo', o meu mundo, a redoma. Depois cresceu.
Sou um bicho urbano puro, do 'mato' nada sei para além do banal duns fins-de-semana. Era a cidade, a cidade que me enchia e fazia engalfinharem-se todos os apetites, era tão cheia de tanto e tanto que eu me esforçava por conhecê-la às miudezas, fauna, flora e cruzamentos. Dos 7 aos 20, já o dissde antes, fui tão fantasticamente feliz que não há hesitação no dizer que era excessivo, afinal não merecia tanto e daí esta saudade, polit. correcto chamada de nostalgia. OU em variante gritantemente presente das primeiras às últimas linhas, 3 anos já..., saudades de mim então, coisa infantil portanto.
Thanks, soube-me muito bem o que disseram do que escrevi, são estes os incentivos que contam.
Que maravilhosa escrita. Gostei demais e fico à espera da continuação. Para quando, a obra feita? Ana Maria
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