sábado, abril 01, 2006

Princesa das Duas Cidades



Lá, naquele tempo em que não se viam capulanas nas varandas das avenidas, garrindo as acácias e os jacarandás usurpadores das cores turísticas, lá naquele tempo em que a naturalização da cidade estava tão longe como distava o terreiro de onde saíam naus com decretos e leis, chiar de madeiras velhas gretadas pela História que a água dos oceanos traçou.

Lá, onde os machimbombos sempre cheios quando não era dia de praia faziam sempre rumo aos subúrbios. Lá, naquele tempo em que havia duas cidades e o cimento duma ganhava fungos quando o caniço e o zinco o confrontavam, Norte e Poente, tanto, que o Sul era dos arranha-céus e a Este o mar chamava.

quando amar era perigoso se, no orgasmo, os pêlos dos amantes não brilhassem ambos em pálido rosa imperial, ou tinha tabela miscigenada em moeda com a prata da esfera armilar, repúblicos vinte escudos. Naquele tempo, lá.

nem tinham sido inventados os chapas, pois as capulanas só vinham ao cimento vender amendoim torrado e maçaroca assada, peixe e papaias no mercado. Lá, princesa das duas cidades...

O tempo caducou-se. Vieram as capulanas às varandas e penduraram-se às janelas, garrida nova flora da cidade que esmagou os jacarandás e as acácias, velho álbum de postais em que a abertura da lente não fora feita em formato technicolor: faltava-lhe a cor das capulanas quando a objectiva se virava aos céus para focar as torres, ou se espraiava colina abaixo no longo rectilíneo das árvores aveninadas. Em baixo, sorria o mar, esse fotogénico amante que a todas beija e ergue maliciosas ondas para lamber, guloso, as cores quentes da sua capulana.

(lá, naquele tempo)

Eu vim de lá. Vivi lá e lá li livros sobre fórmulas alquimísticas do viver, que não podia entender sem perceber primeiro que a areia dourada que nas suas folhas se entranhava, que as manchas das mangas que me sujavam a camisa, essas, eram as primeiras letras a ler, a cartilha da cidade. Das duas cidades... lá, naquele tempo...

– e bastava saber olhar como sabia ler. Se o tivesse feito, então perceberia que as frondosas copas das árvores eram flores dum jardim com amos e empregados, que a areia da praia era grão que só alvas pás moinhavam, pés de longe pois da cidade que raramente os via calçados.

Lá, naquele tempo, eu fartei-me de ler livros e chumbei, não passei o exame: eu não sabia ler o livro d'A Princesa das Duas Cidades. Naquele tempo eu, estando lá, não estava: não via a luz das capulanas ondeando nos prédios, brilho que se lia mais além do vermelho das acácias e do azul dos jacarandás, cores que cegavam.
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(a imagem das crianças brincando nas praias da marginal de Maputo foi encontrada aqui)

6 Comments:

Blogger th said...

Já fui a três sítios e nos três me aqueci à sombra das tuas palavras...aqui deixo um beijo, th

11:47 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Parabéns e um beijo, já tenho a foto e será recomendado, o 'post' no chuinga assim que volte dos jornais no café (ainda bem que temos leitores opostos, senão deskobriam a minha peta do 1 de Abril lol) - muf'.

1:55 da tarde  
Blogger Madalena said...

Tão lindo que parece mentira...
Beijos, Gil!!!!

6:30 da tarde  
Blogger miguel said...

Caro Carlos Gil
gsotei imenso, está daqueles cheios de dor doce. Posso pôr no À Sombra dos Palmares?
abraço,
miguel

7:36 da tarde  
Blogger Ana said...

Tenho muito que ver e ler por aqui.
Mas este post já saboreei, se me é permitida a expressão.
Não sei de razão nenhuma: nunca vivi em África e amo África. E percebo todos os que amam e nunca esquecem África. Tem magia.

10:08 da tarde  
Blogger Vida said...

Também eu vim de lá...também nasci lá...também vi o nascer e o pôr do sol de África...também cheirei a terra molhada...também...que lindo texto, eu mergulhei nestas letras e o tempo recuou em mais de trinta anos...as vezes que os meus pés percorreram estas areias...nem sempre sabemos ver mais além, eu também não soube.
Um beijinho de uma coca-cola.

6:36 da tarde  

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