Tinhas montes de defeitos e mal me começaram a nascer uns pêlos na cara comecei a 'entrar em choque' contigo. Deveria estar a imitar-te em versão modernaça, pois reprovavas a minha maneira de viver assim como eu não gostava da tua e, daí um pouco, eu teria talvez dezassete/dezoito e já tínhamos códigos postais distintos. Hoje, trinta e dois anos depois de teres morrido - olha a ironia: ficaste na terra que detestavas e eu, que a adorava, é que me vim embora..., lembro as divergências e o insensato de quase todas elas: tu, rígido e austero; eu, um esgrouviado irreflectido: ambos nos nossos papéis geracionais aos cânones, mais o exagero da falta de diálogo e, muito, a resistência dum entender o outro.
Tenho das chamadas memórias boas e, nelas, eu de ti, pai, tenho as melhores: de, puto de calções, aos domingos de manhã cumprirmos o 'nosso' ritual e íamos só os dois à Baixa da cidade; ou numa feira do livro na praça 7 de Março, quando lá as havia em volta do coreto, ou então numa papelaria, eu escolhia um montito de revistas de BD e íamos até à esplanada do Continental - o teu café de eleição. E, de em família, passearmos nas noites quentes a ver as montras, esse exercício familiar que era agradável, mais o era pelos momentos que eu e tu passávamos de olhar perdido em sonhos próprios, em frente das montras das casas de ferragens e ferramentas, a olhar a aprender, mais do fomento do sonho - herdei-o de ti, isso é-me hoje indiscutível! -, também os 'carimbos genéticos' da masculinidade que me permitias, imprimias. Se falo dos momentos familiares, dos bons, recordo aquela instituição laurentina que era a 'volta dos tristes' até à Costa do Sol, no regresso o carro estacionado no começo da areia, os relatos de futebol e as brincadeiras, o lanche que a minha mãe sempre levava... e isto na VW Kombi - meu pai era padeiro (a Lisboa nas Lagoas e a Lafões no Malhanga, nesta como 'gerente' do meu tio, o Dionísio da Serrano ao Alto Maé) e só quando fomos para o Malhangalene é que teve uma pastelaria - a Veneza ao lado da Casa Conceição, "tão pequena que nunca lá aportou a gôndola do sucesso" - pois, já mais tarde desses tempos veio o Simca Aronde e a carrinha Daihatsu.
Lembro-me, lembro-me muito, dos teus livros. Muitos, carradas de livros policiais daquelas da colecção Vampiro, mais os Dick Haskins e tantos mais, os livros de best-sellers como os de Irving Wallace, o Conde de Monte-Cristo, calhamaços que nem me impedias e até 'ajudavas' sugerindo agora este, agora aquele... não gostava da selecção que fazias aos policiais e surripiava-te sempre que podia os outros, os escondidos em baixo do monte, aqueles onde além do sangue & tripas havia beijos e amassos, páginas que se tornavam encaloradas e húmidas enquanto os devorava escondido na casa-de-banho de todas as descobertas e iniciações. E, de livros ainda, recordo-me com um sorriso muito especial, terno, grato mas acima do mais terno, de, aquando da minha fase dos 'Os Cinco', da Enid Blyton, andares com a lista dos em falta na carteira para, quando ias aos alfarrabistas em busca dos teus policiais, sempre me trazeres uma prenda, uma novidade, um dos em falta. A tua biblioteca e a de poesia da mana foram os meus 'clássicos', e o ter perdido Eça e outros com essa singular selecção, acho-o conclusão mais do que discutível...
Mas o melhor que recordo era o nosso passeio na Baixa às manhãs de domingo, só tu e eu. Ainda sinto a tua mão no meu ombro, sabia-me bem na altura e hoje sei que me saberia bem senti-la, talvez hoje nos entendêssemos como, àquela época, ainda o fazíamos mas já por muito pouco tempo.
Desses momentos na esplanada do Continental, em que tu lias o Notícias e eu a banda desenhada, há um momento que nunca te contei e aproveito agora: não me caçaste. Na tarde anterior, sábado, eu tinha rogado em casa para deixarem-me ir de machibombo até ao autódromo ver os treinos para as "3 horas de Lourenço Marques" - já então tinha o fascínio pelos vrum-vruns... e que não, e que não, é muito perigoso e longe e sabe-se lá quem lá anda, e não e pronto e estás proibido. E eu fui, está claríssimo que fui, que entre machibombos e boleias pedidas lá cheguei ao autódromo do ATCM, extasiado com a beleza dos bólides, os heróis ali à minha vista, a cada ronco dos motores eu imaginava-me dentro deles, ora neste agora naquele... a minha paixão e a minha desfaçatez foram tantas que, sei lá como, consegui infiltrar-me na zona das boxes para ver ao pormenor as máquinas e olhar esbugalhado os deuses de fato-macaco e capacete! Adorei aquelas horas fugido, e regressei como era mais que óbvio! - eu Tinha razão, não era? - são e salvo a casa, sei lá que mentira inventada a justificar uma tarde desaparecido. Pois bem, naquela manhã seguinte, lá na mesa do café, olho para o jornal que lês, à maneira clássica com ele levantado pelas duas mãos e, nas folhas viradas para mim vejo uma reportagem sobre a sessão de treinos da corrida - que seria nessa tarde!..., documentada com algumas fotografias: numa, debruçado sobre a traseira dum Chevron B8-BMW que era lindo de morrer, a examinar por certo minuciosamente o motor e redondezas, a cabeça naturalmente baixa por inclinada e a face em tons mais semi-indefinidos tons cinzentos na fotografia, estava eu... aliás, a roupa era indesmentível… o que suei fininho, o que deverei ter inventado para, nessa manhã, se abreviar o ritual de leitura 'pai-filho' na esplanada do Continental... Salvei-me, salvei-me por certo dum enxerto de porrada pois, se até poucos leveis, sabia já por experiência que a 'infracção' que cometera era razão sem apelo para 'comê-las', mais outros castigos que ainda viessem. Mas safei-me... bom momento este, que recordo.
Mais tarde incompatibilizamo-nos profundamente. Pouco depois faleceste e disso e disto não estou preparado para falar. Hoje, para além da natural pena de não ter vivo o meu pai, avô dos meus filhos, acresce a da certeza que, com tolerância e aceitação mútua de maior empenho que aquele que tivéramos, íamos 'entender-nos'. Íamos, pai, tenho a certeza. Que é do tamanho da falta que sinto de ti, hoje, hoje e há tantos anos a mais.
Carlos F. M. Gil Barreiros
Tenho das chamadas memórias boas e, nelas, eu de ti, pai, tenho as melhores: de, puto de calções, aos domingos de manhã cumprirmos o 'nosso' ritual e íamos só os dois à Baixa da cidade; ou numa feira do livro na praça 7 de Março, quando lá as havia em volta do coreto, ou então numa papelaria, eu escolhia um montito de revistas de BD e íamos até à esplanada do Continental - o teu café de eleição. E, de em família, passearmos nas noites quentes a ver as montras, esse exercício familiar que era agradável, mais o era pelos momentos que eu e tu passávamos de olhar perdido em sonhos próprios, em frente das montras das casas de ferragens e ferramentas, a olhar a aprender, mais do fomento do sonho - herdei-o de ti, isso é-me hoje indiscutível! -, também os 'carimbos genéticos' da masculinidade que me permitias, imprimias. Se falo dos momentos familiares, dos bons, recordo aquela instituição laurentina que era a 'volta dos tristes' até à Costa do Sol, no regresso o carro estacionado no começo da areia, os relatos de futebol e as brincadeiras, o lanche que a minha mãe sempre levava... e isto na VW Kombi - meu pai era padeiro (a Lisboa nas Lagoas e a Lafões no Malhanga, nesta como 'gerente' do meu tio, o Dionísio da Serrano ao Alto Maé) e só quando fomos para o Malhangalene é que teve uma pastelaria - a Veneza ao lado da Casa Conceição, "tão pequena que nunca lá aportou a gôndola do sucesso" - pois, já mais tarde desses tempos veio o Simca Aronde e a carrinha Daihatsu.
Lembro-me, lembro-me muito, dos teus livros. Muitos, carradas de livros policiais daquelas da colecção Vampiro, mais os Dick Haskins e tantos mais, os livros de best-sellers como os de Irving Wallace, o Conde de Monte-Cristo, calhamaços que nem me impedias e até 'ajudavas' sugerindo agora este, agora aquele... não gostava da selecção que fazias aos policiais e surripiava-te sempre que podia os outros, os escondidos em baixo do monte, aqueles onde além do sangue & tripas havia beijos e amassos, páginas que se tornavam encaloradas e húmidas enquanto os devorava escondido na casa-de-banho de todas as descobertas e iniciações. E, de livros ainda, recordo-me com um sorriso muito especial, terno, grato mas acima do mais terno, de, aquando da minha fase dos 'Os Cinco', da Enid Blyton, andares com a lista dos em falta na carteira para, quando ias aos alfarrabistas em busca dos teus policiais, sempre me trazeres uma prenda, uma novidade, um dos em falta. A tua biblioteca e a de poesia da mana foram os meus 'clássicos', e o ter perdido Eça e outros com essa singular selecção, acho-o conclusão mais do que discutível...
Mas o melhor que recordo era o nosso passeio na Baixa às manhãs de domingo, só tu e eu. Ainda sinto a tua mão no meu ombro, sabia-me bem na altura e hoje sei que me saberia bem senti-la, talvez hoje nos entendêssemos como, àquela época, ainda o fazíamos mas já por muito pouco tempo.
Desses momentos na esplanada do Continental, em que tu lias o Notícias e eu a banda desenhada, há um momento que nunca te contei e aproveito agora: não me caçaste. Na tarde anterior, sábado, eu tinha rogado em casa para deixarem-me ir de machibombo até ao autódromo ver os treinos para as "3 horas de Lourenço Marques" - já então tinha o fascínio pelos vrum-vruns... e que não, e que não, é muito perigoso e longe e sabe-se lá quem lá anda, e não e pronto e estás proibido. E eu fui, está claríssimo que fui, que entre machibombos e boleias pedidas lá cheguei ao autódromo do ATCM, extasiado com a beleza dos bólides, os heróis ali à minha vista, a cada ronco dos motores eu imaginava-me dentro deles, ora neste agora naquele... a minha paixão e a minha desfaçatez foram tantas que, sei lá como, consegui infiltrar-me na zona das boxes para ver ao pormenor as máquinas e olhar esbugalhado os deuses de fato-macaco e capacete! Adorei aquelas horas fugido, e regressei como era mais que óbvio! - eu Tinha razão, não era? - são e salvo a casa, sei lá que mentira inventada a justificar uma tarde desaparecido. Pois bem, naquela manhã seguinte, lá na mesa do café, olho para o jornal que lês, à maneira clássica com ele levantado pelas duas mãos e, nas folhas viradas para mim vejo uma reportagem sobre a sessão de treinos da corrida - que seria nessa tarde!..., documentada com algumas fotografias: numa, debruçado sobre a traseira dum Chevron B8-BMW que era lindo de morrer, a examinar por certo minuciosamente o motor e redondezas, a cabeça naturalmente baixa por inclinada e a face em tons mais semi-indefinidos tons cinzentos na fotografia, estava eu... aliás, a roupa era indesmentível… o que suei fininho, o que deverei ter inventado para, nessa manhã, se abreviar o ritual de leitura 'pai-filho' na esplanada do Continental... Salvei-me, salvei-me por certo dum enxerto de porrada pois, se até poucos leveis, sabia já por experiência que a 'infracção' que cometera era razão sem apelo para 'comê-las', mais outros castigos que ainda viessem. Mas safei-me... bom momento este, que recordo.
Mais tarde incompatibilizamo-nos profundamente. Pouco depois faleceste e disso e disto não estou preparado para falar. Hoje, para além da natural pena de não ter vivo o meu pai, avô dos meus filhos, acresce a da certeza que, com tolerância e aceitação mútua de maior empenho que aquele que tivéramos, íamos 'entender-nos'. Íamos, pai, tenho a certeza. Que é do tamanho da falta que sinto de ti, hoje, hoje e há tantos anos a mais.
Carlos F. M. Gil Barreiros
(imagem da escultura em arte shona "like father like son", gamada aqui.)
5 Comments:
Gostei sobretudo que tenhas falado do teu pai, e da maneira como o fizeste.
Expurgar ressentimentos é bom para a nossa paz interior, gritar mágoas, exorcizar os nossos demónios...
Um beijo, th
Depois de eles partirem sentimos cá uma falta...
Kandandu, amigo
Eugénio
Embora se trate de uma relação necessariamente diferente, onde o factor de identificação fica para segundo plano,vejo nesta figura paterna o mesmo lado amigo que tive a sorte de viver com o meu pai. Ainda não digeri o desaparecimento físico do meu pai, mas é normal: passaram só 2 anos. Mas tu, Carlos, consegues dar uma vida muito viva ao teu, apesar dos 32 anos que já passaram... A minha admiração para ti. E um abraço.
(Brinquei muito em frente à Lafões!!!) madalena
Embora se trate de uma relação necessariamente diferente, onde o factor de identificação fica para segundo plano,vejo nesta figura paterna o mesmo lado amigo que tive a sorte de viver com o meu pai. Ainda não digeri o desaparecimento físico do meu pai, mas é normal: passaram só 2 anos. Mas tu, Carlos, consegues dar uma vida muito viva ao teu, apesar dos 32 anos que já passaram... A minha admiração para ti. E um abraço.
(Brinquei muito em frente à Lafões!!!) madalena
Fiquei sem palavras.
Gostei do que li.
Abraço
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