quarta-feira, março 07, 2007

carta encontrada numa gaveta


“Queria voltar a namorar. Que na mesa de pastelaria à torrada partilhada se juntassem os olhos assobiando desejo, as mãos cúmplices tocando-se no galanteio do animal amar, ternura e sofreguidão conciliadas nas peles que furtivamente se beijam entre copos, pires e piscadelas d’olho, transfusão de químicas corporais, acasalamento selado com timbre em vermelho, no rubro da paixão. Peroro e reclamo, na insistência pela carência do namoro à mesa da pastelaria ou onde quer que calhasse, esse roubo ao diário banal, às horas sem amor fazedoras das más caras do quotidiano, municiadoras de ácido às palavras que saem e entram na multidão de gritos e protestos que pigmenta o cinzento quotidiano, pois a língua do silêncio não mente e por ela fala a alma: urge aos dicionários adoptarem esse amargo como antónimo à palavra paixão: apaixonados, ex-apaixonados e promitentes-apaixonados reclamam-no, e com a acidez dos que daquela olham a memória com amarga nostalgia – sou um subscritor.
É do que mais me lembro com saudade, do namoro, os dedos, os olhos, a torrada, o sorriso quando nos víamos, a luxúria revelada em cúmplices segredos beijados trocados, a fatia partilhada. Tudo o resto destes anos tantos, a comida que saiu mal ou o aziago de alguns acordares, a hipoteca que não encolhe ou a velhice que não pára de espreitar encontrando-nos sempre desarranjados, nada disso vale quando me lembro da mesa da pastelaria e do namoro lá, lambendo-nos em ternuras e outras deliciosas pornografias de intimidades que qualquer meia-torrada dá a dedos enamorados, esse lanche saciante do ser e existir, desejar e ser-se desejado.
De quando brincávamos e corríamos um para o outro sempre que podíamos, e se trocava de bom grado a solidão pelo outro, e, se deles então já houvesse arte e uso, duvido que entre nós trocássemos tantos e-mails de anedotas e correntes, maravilhas do mundo e blá-blá, tantos étecéteras onde está ausente o despenteio da escrita íntima que, então os houvesse, eles teriam… – e sorri ao pensar nisso, repara, agora à longa distância entre dois computadores... Recordo-me de quando éramos criativos nos rituais e a vontade de agradarmo-nos fazia nascerem flores nos murmúrios e beijos lisonjeadores, eternos galanteios sussurrados no esperanto da paixão. Como não sentir saudade?
É, recordo-me e saem-me tristezas, neste tampo de mesa de pastelaria dum blogue conto-to, guloso escrevo e estendo os dedos à cata da gordura da fatia do meio da torrada, do amor e da sua fatia que queria repartir contigo num namorar que dói quando já não se lembra quando e como se perdeu, quando a parte mais tenra e que partilhávamos até os lábios se encontrarem diluindo-se, num saciar que só se escreve nessa namorada palavra bela e arredia, triste de tão legível quando em solidão, quando esse tempo acabou e o namoro se escapou porque os dedos já não se tacteiam mais. Nestas cãs mal escanhoadas, sinónimas de memória perdida nas manhãs e tardes dos anos que correram mal, esse tanto tempo longe do tampo da mesa de pastelaria, da sofreguidão dos dedos mutuamente se enamorarem por uma torrada partilhada, uma flor beijada”


Ah, estava já a terminar de a transcrever e a 'fechar' o post e lá me esquecia, vê lá tu…: encontrámo-nos uma tarde destas, partilhamos uma torradita? ;-)
(imagem "the kiss" daqui.)

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Embora seja da mesma terra que você nunca tive o prazer de partilhar consigo uma torradita...mas olhe,fiquei tão sensibilizada q não consegui ficar calada.Desejo-lhe sinceramante q continue a partilhar essa "torrada"com muito amor e c alguem q de facto o mereça,
Ana

12:25 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

PUXA!
li seu texto....precisei preparar uma torrada para me fazer companhia só para te escrever...e dizer pouco...apenas que a dor da lembrança dos farelos que se foram,foi muito generosa com os que tiveram o previlégio de desfrutar da delicada beleza do que você escreveu ....alguns momentos se esfarelam na nossa vida para dar lugar a tanta poesia como a sua...me encantei!

10:46 da tarde  

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