quarta-feira, julho 26, 2006

Freitas do Amaral (e o "Hóquei Clube Os Tigres de Almeirim")

Acompanho na rama a política interna e pior ainda a externa: quer em blogues quer em jornais, por fastio e desilusão, actualmente à maioria das notícias pouco vou além dos títulos. Isto para dizer que não tenho opinião de ‘leigo informado’ sobre o consulado Freitas do Amaral neste governo e no Ministério dos Negócios Estrangeiros. Fica-me uma luzinha acesa, a de que essa coisa abominável chamada ‘real politik’ andou mais vezes arredia das sombras daquele gabinete que nos consulados anteriores: o tamanho da pequenez nacional não calava a primeira voz que se fazia ouvir ‘lá fora’ quando a tal havia razão – incluo a habitual mordaça político-partidária nacional dos ‘compromissos’ e a praga mui lusa do vulgus cinzentismo, o não abrir a boca sem antes pensar nas palavras pessoalmente mais inócuas, mais descomprometedoras atento o mítico e cobarde “sei lá eu o futuro…” Não foi um Scolari porque é um político e, portanto, não lida com massas populares tão abrangentes e participativas como quando se fala de futebol.
Esta conversa a propósito da sua demissão de ministro dos NE em que a doença do Homem conciliou-se com o pré-aviso público que o Político, esse eterno diplomata da velha escola, entendeu fazer há tempos atrás. Afinal, algumas coisas que me passam pela cabeça quando leio, penso, ou ouço falar o nome ‘Freitas do Amaral’… De imediato recordo o seu livro de memórias, “O Antigo Regime e a Revolução”, não por ele em si pois é mais um testemunho entre tantos que já há e de alguns possíveis de continuarem a faltar, mas pelo que senti ao lê-lo e, depois, quando ofereci um exemplar a amigos, daqueles por quem a amizade acredita que é seu complemento natural se lhes oferecerem, no caso um que inesperadamente descobrimos e, lendo-os, achou-se-lhe importância suficiente para passar a oferta que é de Amigo (também ofereci um ao meu sogro, mas Sogro é categoria doutra ordem, é estado de vida; e aí a oferta foi lúdica e sem esperança do ‘outro’ lado ser entendido e aceite, seja ele à volta dum penalty, o colonialismo, ou das virtudes de a democracia ser soletrada a várias vozes). Particularmente quando acreditamos, com sorriso largo, que - também eles, eram capazes de passar pelo livro dez vezes seguidas e só o leriam se nele tropeçassem, e, nos entretantos, com ele nas mãos, concluí-se que essa leitura-visão é importante para perceber mais abrangentemente do nosso passado enquanto geração, sentimento que gostávamos de ver comungado por quem apreciamos além dos pessoais percursos muito comuns. E porquê? porque li uma visão que desconhecia além das banalidades teatrais, um livro que em regra também eu não leria pela asnice da cultura política afunilada, o relato honesto duma época em que todos foram simultaneamente Santos e Demónios, conforme a liturgia que se use à benza. Honesto na defesa dos seus valores, notando-se o apaixonado que fala de acontecimentos que pôde e pode conjugar com o pronome mais pessoal de todos, mas ‘sentindo-se’ ao lê-lo que não abusa do aproveitar linhas para rezar missa cantada aos seus amores de militância; esse livro é um depoimento que integro na prateleira dos livros da História recente de Portugal: ganhou esse lugar como documento e se um dia for aberto para consulta sobre Facto não me merece especial receio de credibilidade, do contado não duvido que é ‘a outra’ visão dum acontecimento importante, histórico: tem credibilidade pois além de pormenores cuja ocasional imprecisão casa bem com a sua natureza de livro de memórias acerca de acontecimentos tremendamente polémicos como é uma Revolução, seus golpes e contra-golpes, entrincheirados na grande barca da Ideologia, porões vastos e fascinantes (eu disse ‘pormenores’, não duvido do rigor da essência). A honestidade do relato, os olhos sem os óculos escuros que o medo do Futuro põe a alguns políticos quando vão a retratos eram visíveis, e daí – esse livro, terá vindo a não estupefacção quando, nos anos 90’s, Freitas do Amaral começou a dar voz e prática políticas a uma corrente política natural adversária eleitoral da da sua criação: ele e o CDS dos tecnocratas e arrivistas, muito menos ainda o CDS-PP, radicalizado com o espalhafato tão prezado pelos seus beatos pais e diligentes coveiros, Manuel Monteiro e Paulo Portas.
Na primeira volta das Presidenciais de 1985 votei num candidato qualquer dos que são clientes habituais do carro-vassoura, e na segunda votei Mário Soares. Ele, Freitas, era o Diabo que eu e muitos não queríamos ver na Presidência de Portugal: a Revolução de ’74 estava ainda muito próxima (embora a tenha conhecido já a entrar na ressaca: cheguei a Lisboa em Janeiro de 76) e, acresce, em anos então com esquinas por virar tivera um grande fascínio por pichagens da letra A com uma bolinha à sua volta. Remata o horror de pensar em ter de aturar cinco anos aquela cara de… Freitas: isso assustava e foi a gota de água que pôs a boiar o sapo, refresco por acaso até recomendado e em dose além da gota, aos copos, por uma casa onde nessa época eu ocasionalmente gastava. A finalizar o capítulo “Presidenciais 85” gostei de saber que pagou com honorários do seu trabalho as contas sobrantes da campanha, após rechaçadas pelos partidos seus padrinhos políticos: seja na mercearia ou na política, é assim que se deve agir: “pay the bills”, se elas forem justas.
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Lembro-me agora – e abro o parêntese pois merece ser contado, que uma única vez estive ao pé do Prof. Freitas do Amaral e, pondo-se uma questão de legalidade sobre se a minha presença numa prova académica seria aceite ou recusada, o seu veredicto foi-me negativo. Nunca contestei veementemente a decisão, pessoalmente tomada por ele, para além da ironia que não podia ser desaproveitada: representava-me com a sua presença institucional a famigerada e odiada “pata do Estado sobre o Cidadão, coitado dele vítima do (abuso de) Poder”. Indo mais fundo, o próprio Freitas, naquele momento, simbolizava-me em carne, osso, papada e óculos, o monstro Estado… Mas não me ficou qualquer amargo pendente pois ele, Freitas, agiu correctamente: vigiava a legalidade e eu era o prevaricador, eis os factos simplificados. Conto, portanto:
Na altura, julgo que fins de setentas e princípio de oitentas, eu aspirava em entrar para a faculdade pois achara em mim um inesperado e fora de época gosto em estudar. Tinha um problema que só vim a resolver em serões do ensino pós-laboral no final dessa década, a de 80: ‘antes’, o ensino médio terminava no ‘7º ano’ e fazia-se a admissão à Faculdade ou ficava-se por ali. Então, já, para ingressar no superior faltava um degrau que me era novo, o 12º ano escolar; também houve o Ano Propedêutico, mas acho que não coincide com a época que estou a retratar. Havia, como ainda há segundo penso, uma oportunidade extra, um funil com um buraquito onde eu me sentia com legítimas esperanças vir a caber: o exame ad-hoc, com análises de decisão em muito suportadas pela cultura do candidato e na sua capacidade de expressar ideias com coerência. E lá me inscrevi e no dia do exame rumei a Lisboa, à Clássica, à Faculdade de Direito que era a menina que me fazia sentir aguado e a quem queria, então, acariciar os saberes.
Apressando a memória e indo ao que interessa e a liga ao Prof. Freitas do Amaral: é natural que os examinandos se tenham de identificar para a prova, e também o é que num país que adora papéis com números e carimbos ‘oficiais’ o sacrossanto Bilhete de Identidade fosse a natural exigência. Também é (era? é?) natural que eu me esquecesse de o trazer comigo no dia menos certo para tal, sendo triste realidade que na aventura da revolução moçambicana aprendera que uma relação profundamente empática e chegada com ele, BI, pode ser muito saudável face aos potenciais imprevistos da alternativa. Ora bem, não levava o BI e o problema explode nas mãos do ‘fiscal’ após, lista na mão, ter passado em secretárias onde se viam os quadradinhos de plástico reluzente expostos, antes e em boa voz pedidos. A surpresa dele com o (plastificado) que eu lhe exibi, o ‘não pode!’ que é sempre a primeira reacção quando a anormalidade aparece, depois havia eu que vinha com a corda toda ligada para argumentar com cultura e as ideias expressas com coerência, expondo, orgulhoso da sua dignidade, um cartão que tinha o meu nome e a minha fotografia, - plastificado!, cromaticamente muito diferente dum habitual “Bilhete de Identidade” mas emitido por uma entidade que é óbvio só poder ser reputada como inegavelmente credível: o cartão de sócio do Hóquei Clube ‘Os Tigres’, nobre e eclética colectividade de Almeirim. O talão da quota não estava exactamente com o mês actualizado mas, aprestei-me em vincar, essa era matéria estranha à em causa e irrelevante para dela achar mérito: a cara do macaco era a minha, eu dava pelo nome, e até sabia assinar: eu era eu – dito pelo próprio e confirmado pelo ‘Os Tigres’, associação civil nascida já na democracia e de méritos sociais de relevo, incluso com ilustres juristas nos seus corpos gerentes (na altura era a melhor ‘casa de batota’ da zona e, sabe-se, advogado que se preze adora uma boa cartada).
Obviamente que ‘ele’ tinha imensas dúvidas face ao inesperado e contrário ao programado, e tinha medo de decidir havendo oposição, pois, afinal, estava ali como fiscal e não como sociólogo ou perito do que quer que fosse. E veio ainda outro, foi-se juntando o habitual montinho de opinantes, chegou a hora do exame e o que acontecia naquela sala era que eu prestava prova de uma forma que não estava regulamentada: ao vivo e a cores, ad-hoc em relação ao programado exame oficial.
Terá sido muito provavelmente pelo iminente atraso de início do exame naquela sala, mas o F. Amaral apareceu a saber de novas: ele era o responsável máximo pelo exame de acesso àquela Faculdade, onde então já era um docente prestigiado. O resultado dessa oral foi-me inglório: chumbei, ele chumbou-me, desvalorizou a minha argumentação sobre o plastificado e declarou inválida a minha prestação escrita. Verdade seja dita que a sua lente examinadora, de mim e do meu cartãozinho plastificado, não me permitiu estender muito as asas e desfiar argumentos, como os então já só assistentes antes fizeram, e ordenou ao silêncio as hesitações que eu ad-hoc conquistara ao ‘seu lado’: aquele cartão identificava-me num círculo restrito e para efeitos específicos, eles curtos perante o global da sociedade quando esta, pelo Estado que a representa, decreta a identificação do Indivíduo pelo meio geral e de posse obrigatória; e ele, responsável máximo pelo Exame, não prescindia de saber, foto, número e carimbos, se eu era mesmo eu, além de presumivelmente gostar de hóquei em patins e, talvez, de jogar às cartas.
Como não abdiquei da minha razão e o cartão mais bonito me ia parecendo conforme por ele argumentava, foi-me autorizado ficar na sala e fazer a prova escrita, previamente informado de que não seria avaliada. Tive curiosidade em saber do carimbo oficial que a minha prestação merecera e quando saíram os resultados fui saber de mim: fora dado como ausente: “não compareceu”.
Foi giro. Desde a primeira hora que o episódio trás-me um sorriso quando o lembro: casou bem com a, então, ‘minha época’. Atrasou a minha “formação académica” pois só anos mais tarde fiz o ano-lapso em falta e abordei a Faculdade de Direito; adianto que sem glória e tempo para mais que uma ou duas estórias mas foi uma tentativa que gerou memória, essa nossa História pessoal.
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Depois houve a ONU, aquela casa grande onde os de fora é que mandam, em cargo muito ‘manchetes’ mas politicamente de segunda linha na mesa das decisões internacionais, mas dele, exercício, não sobraram escândalos ou registo de borradas pessoais; o que, àquele nível, entra naturalmente no saldo dos balanços positivos. Mais tarde veio a crise do Iraque, a do Bush-filho, e meia dúzia de caneladas que pregou onde ninguém dele as esperava; e o meu respeito pela sua honestidade intelectual recresceu.
Já no governo Sócrates e aureolado como se duma estrela conquistada no defeso futebolístico fosse, esse brilho tê-lo-á em certa altura levado a sonhar com um anti-85 e, como “topo de gama” consensual dos seus antigos algozes, ser eleito Presidente da República. Terá existido pois leram-se sinais, ténues esbracejares silenciosos de “eu estou aqui”, mas houve o comum bom senso que o evitou, discernimento da esquerda que se gastou porém aí, faltando depois em doses maciças à candidatura do seu para sempre eterno compére, Mário Soares. Fez 'borradas' personalizadas enquanto MNE, claro que fez, os 'cartoons' islâmicos e mais umas coisitas. Qual o ministro deste país que não as faz? é quase... sina inerente e natural ao cargo.
Quis com isto dizer que mesmo nunca tendo votado nele aprecio e respeito Freitas do Amaral. Se o Homem diz que lhe doem as costas e não pode continuar a trabalhar assim, eu acredito. Se o Político fez a sua viagem pessoal da direita para a esquerda (ele dirá que dum centro para outro, são visões...), eu respeito igualmente e até me congratulo. Quis com isto dizer que Freitas do Amaral é um político que não me envergonha e até digo mais: muitos outros como ele houvessem, intelectualmente honestos e assim despegados das guerrinhas e tricas laricas, que o luso cenário político não era o que é, deprimente, e desconsoladoramente tão 'políticamente correcto'.
Este post vem atrasado: foi iniciado no princípio do mês mas pelas sempre poderosas razões que nada valem mas adiam as coisas importantes, só hoje foi acabado. Atraso que se soma ao outro, o de há mais tempo dever ter dito publicamente do meu respeito por ele, do meu aplauso à postura e coerência.
(caricatura gamada aqui)