Aula de leitura (vocabulando confissões)
Já li muito mais do que agora. Porque não havia Internet e antes dela a leitura e alguns ócios ocupavam o seu tempo de hoje, também porque não sou o mesmo que era, provavelmente também pela idade: tenho a paciência modificada. Hoje, em que já não tenho tempo para os policiais e thrillers que colam cirurgicamente insónias a cérebros esponjas de heróis e mundos de aventuras, demoro-me muito mais nas linhas, nas frases, por arrasto nas ideias quando delas hajam-nas interessantes, ao raciocínio que as escreve, ao extraordinário que é construir um romance, escrever as ideias que o fazem ir nascendo quadro a quadro. Também à forma, pois claro: tenho sonhos que sobreviveram à fase das ilusões e neles está o melhor do que sobrou.
Continuo a comprar livros com regularidade mas há muitos mais que vão directos para as estantes do que antes acontecia, por não lhes ver especial atractivo que me leve a alterar outras coisas que faço, rotinas ainda prioritárias: um dia terei pachorra e, então, pegarei neles com uma década de atraso à multidão. Por exemplo, comprei “O código da Vinci” por estar em saldos num hipermercado, promoção da quinzena junto com o bacalhau crescido da Noruega, os chapéus-de-sol para a praia e outras magníficas oportunidades: mergulhou directo nas lonjuras das filas em pó preservadas, ideal para uma pacata reforma de tudo e o Grande Tempo, esse ócio final que há que consumir sem olhar a níveis de colesterol e diabetes, for a minha derradeira fortuna. Se um dia for preso levo-o comigo; isso e uma vontade férre em deixar de fumar.
Vem a propósito do que ando a ler, o último livro do grande Mia Couto: “O outro pé da sereia”, como sempre na ‘Caminho’ (foto gamada aqui). Se passeio pelas folhas fascinado pelas montras que me dão, se as personagens se entranham e delas nascem eus e eu sou eles, mergulho nas identidades e acarinho as tantas empatias que nascem (obrigado Mia: é tão bom ler o com que nos identificamos, e leitor-personagem abstraem-se do mais e Vivem concubinos na leitura…: e consegue-lo, eu senti-o), logo ao fascínio nasce a tristeza e pouso-o, para reflectir na redescoberta duma verdade que me é triste por selo autenticador de desilusões: eu não sou capaz de escrever assim, um romance, na minha pressa de ‘escritor da net’, posts de blogues e quejandos, já tinha rematado com dois lacinhos a estória e ficava satisfeito com o resultado, mais ainda se fosse em momento afortunado que desse uma escrita tão bonita como a que o Mia, mais meia dúzia de páginas em outra meia dúzia, dá a ler e delicia quem as lê. No prazer do leitor a obra alheia está a frustração dele, escritor, quando vê e percebe que nunca conseguirá fazê-lo ‘assim’, que não passa dum pintor naif e amador, para sempre meia dúzia de amigos e outra de desconhecidos que o lêem.
Neste, e para já (já ultrapassei um bom bocado o meio), acho que o autor buscou outros caminhos de escrever e saiu contido no seu reinventar da Língua, a tal já velha menção quando se refere a obra de Mia Couto: a outorga pela escrita de novos vocábulos já existentes no linguarejar popular, além dos muitos por certo por si criados com a alegria malandra de quem dum lego brinca à construção dum universo-brinquedo, fugindo à bocejante figura prevista ao construir peça a peça, palavra a palavra, universos novos em palavras novas, tão simples, tão lógicas e naturais que nos espantamos em como antes não tinham sido lembradas, escritas, registadas. É o seu fascínio e a ele, Autor, também alguma coceira trará pois ele sabe que, cada livro novo, cada texto novo, há sempre uma grande curiosidade no seu leitor, até expectativa, em que novas fórmulas haverá para numa palavra só explicar o insondável do antes relatado em complicados adjectivos e fórmulas ‘clássicas’: restar-lhe-á sempre a vontade de surpreender (e surpreender-se?) no “fazer da outra forma”(*) e, também, agradar: talvez como o actor de cinema que demais veste o mesmo personagem e, um dia, busca a afirmação fora dele.
Neste romance a escrita do Mia é por aí mais contida: o retrato popular, feliz, é descrito em forma tão escorreita, tão fluida, que os tais verbos ‘novos’, as palavras reinventadas, surgem com a naturalidade dos momentos em que eles são os únicos lá capazes, e não existem muitos que façam soltar a gargalhada “mas este! o que ele se foi lembrar! eheh”: há óbvia evidência na sua utilização e segue-se o texto sem que a “nova palavra” em muito dele desvie atenções: romance bem esgalhado, e não ele e mais meio ensaio linguístico. Consegue-o, se é o desejado emancipa-se e a escrita universaliza-se no padrão da língua comum, trejeitos locais e pessoais preservados com gosto e arte, mas mais escorreita dos tais ‘carimbos’ pessoais da obra anterior.
Voltando ao romance que leio: como disse eu agora sou um leitor lento, seja do que for. Acresce que os livros do Mia Couto, habitualmente, passeiam na mesa de cabeceira, no porta luvas do carro, a tal reinvenção da língua costuma fazer-me demorá-los com devaneios em volta duma expressão, mais além do narrado, a trama e os seus cheiros seguidos mas em concorrência com o abismar paralelo, o cavalgar as vias abertas por uma escrita que tem momentos em que se sobrepõe em interesse ao enredo quase página a página. Por isso os livros do Mia sempre foram degustados mais vagarosamente, mesmo no tempo em que era um glutão e lia meio metro de livros por mês. Zero Madzero e o burro N’bomgolo, a ninfa Mwadia, Zeca Matambira o barbeiro boxeur, Justiniano Rodrigues o goês alfaiate reformado, Dia Kumari e Nsundi, viajantes do futuro... as personagens encavalitam-se nas folhas e em mim, entrecruzam emoções, sentires, invejo-as pois na sua simplicidade está a felicidade: o Autor fez(-me) um livro que se apoderou de mim, leitor, magnânimo deixou-me entrar nas páginas e, nas personagens, viver lendo o mundo perfeito de Vila Longe, etéreo viver porque simples.
Agora vou parar de escrever e voltar à (sua) leitura, minha maior homenagem a um livro, outra escrita, um escritor: "thanks Mia, you did it again!"
(*) tenho resistido a tentar editar um ‘Xicuembo 2’ por menores razões mas parecidas, porém sem ter sido capaz de criar alternativa editável: ainda não consegui ‘libertar-me’ da crónica e do conto, do vício do texto curto, alongar tramas para fazer nascer ‘um romance’… fico danado quando penso que serei sempre, só, um contador de histórias!
Continuo a comprar livros com regularidade mas há muitos mais que vão directos para as estantes do que antes acontecia, por não lhes ver especial atractivo que me leve a alterar outras coisas que faço, rotinas ainda prioritárias: um dia terei pachorra e, então, pegarei neles com uma década de atraso à multidão. Por exemplo, comprei “O código da Vinci” por estar em saldos num hipermercado, promoção da quinzena junto com o bacalhau crescido da Noruega, os chapéus-de-sol para a praia e outras magníficas oportunidades: mergulhou directo nas lonjuras das filas em pó preservadas, ideal para uma pacata reforma de tudo e o Grande Tempo, esse ócio final que há que consumir sem olhar a níveis de colesterol e diabetes, for a minha derradeira fortuna. Se um dia for preso levo-o comigo; isso e uma vontade férre em deixar de fumar.
Vem a propósito do que ando a ler, o último livro do grande Mia Couto: “O outro pé da sereia”, como sempre na ‘Caminho’ (foto gamada aqui). Se passeio pelas folhas fascinado pelas montras que me dão, se as personagens se entranham e delas nascem eus e eu sou eles, mergulho nas identidades e acarinho as tantas empatias que nascem (obrigado Mia: é tão bom ler o com que nos identificamos, e leitor-personagem abstraem-se do mais e Vivem concubinos na leitura…: e consegue-lo, eu senti-o), logo ao fascínio nasce a tristeza e pouso-o, para reflectir na redescoberta duma verdade que me é triste por selo autenticador de desilusões: eu não sou capaz de escrever assim, um romance, na minha pressa de ‘escritor da net’, posts de blogues e quejandos, já tinha rematado com dois lacinhos a estória e ficava satisfeito com o resultado, mais ainda se fosse em momento afortunado que desse uma escrita tão bonita como a que o Mia, mais meia dúzia de páginas em outra meia dúzia, dá a ler e delicia quem as lê. No prazer do leitor a obra alheia está a frustração dele, escritor, quando vê e percebe que nunca conseguirá fazê-lo ‘assim’, que não passa dum pintor naif e amador, para sempre meia dúzia de amigos e outra de desconhecidos que o lêem.
Neste, e para já (já ultrapassei um bom bocado o meio), acho que o autor buscou outros caminhos de escrever e saiu contido no seu reinventar da Língua, a tal já velha menção quando se refere a obra de Mia Couto: a outorga pela escrita de novos vocábulos já existentes no linguarejar popular, além dos muitos por certo por si criados com a alegria malandra de quem dum lego brinca à construção dum universo-brinquedo, fugindo à bocejante figura prevista ao construir peça a peça, palavra a palavra, universos novos em palavras novas, tão simples, tão lógicas e naturais que nos espantamos em como antes não tinham sido lembradas, escritas, registadas. É o seu fascínio e a ele, Autor, também alguma coceira trará pois ele sabe que, cada livro novo, cada texto novo, há sempre uma grande curiosidade no seu leitor, até expectativa, em que novas fórmulas haverá para numa palavra só explicar o insondável do antes relatado em complicados adjectivos e fórmulas ‘clássicas’: restar-lhe-á sempre a vontade de surpreender (e surpreender-se?) no “fazer da outra forma”(*) e, também, agradar: talvez como o actor de cinema que demais veste o mesmo personagem e, um dia, busca a afirmação fora dele.
Neste romance a escrita do Mia é por aí mais contida: o retrato popular, feliz, é descrito em forma tão escorreita, tão fluida, que os tais verbos ‘novos’, as palavras reinventadas, surgem com a naturalidade dos momentos em que eles são os únicos lá capazes, e não existem muitos que façam soltar a gargalhada “mas este! o que ele se foi lembrar! eheh”: há óbvia evidência na sua utilização e segue-se o texto sem que a “nova palavra” em muito dele desvie atenções: romance bem esgalhado, e não ele e mais meio ensaio linguístico. Consegue-o, se é o desejado emancipa-se e a escrita universaliza-se no padrão da língua comum, trejeitos locais e pessoais preservados com gosto e arte, mas mais escorreita dos tais ‘carimbos’ pessoais da obra anterior.
Voltando ao romance que leio: como disse eu agora sou um leitor lento, seja do que for. Acresce que os livros do Mia Couto, habitualmente, passeiam na mesa de cabeceira, no porta luvas do carro, a tal reinvenção da língua costuma fazer-me demorá-los com devaneios em volta duma expressão, mais além do narrado, a trama e os seus cheiros seguidos mas em concorrência com o abismar paralelo, o cavalgar as vias abertas por uma escrita que tem momentos em que se sobrepõe em interesse ao enredo quase página a página. Por isso os livros do Mia sempre foram degustados mais vagarosamente, mesmo no tempo em que era um glutão e lia meio metro de livros por mês. Zero Madzero e o burro N’bomgolo, a ninfa Mwadia, Zeca Matambira o barbeiro boxeur, Justiniano Rodrigues o goês alfaiate reformado, Dia Kumari e Nsundi, viajantes do futuro... as personagens encavalitam-se nas folhas e em mim, entrecruzam emoções, sentires, invejo-as pois na sua simplicidade está a felicidade: o Autor fez(-me) um livro que se apoderou de mim, leitor, magnânimo deixou-me entrar nas páginas e, nas personagens, viver lendo o mundo perfeito de Vila Longe, etéreo viver porque simples.
Agora vou parar de escrever e voltar à (sua) leitura, minha maior homenagem a um livro, outra escrita, um escritor: "thanks Mia, you did it again!"
(*) tenho resistido a tentar editar um ‘Xicuembo 2’ por menores razões mas parecidas, porém sem ter sido capaz de criar alternativa editável: ainda não consegui ‘libertar-me’ da crónica e do conto, do vício do texto curto, alongar tramas para fazer nascer ‘um romance’… fico danado quando penso que serei sempre, só, um contador de histórias!
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