Gvang
Os carros movidos a caldeiras de vapor, os 'steam car', travaram luta desigual com os seus irmãos bebedores de gasolina até à decada de trinta, altura em que os poucos sobreviventes foram encerrando portas. Principalmente na América do Norte estes carros tinham o seu reduto de indefectíveis e isso permitiu-lhes viver décadas deixando atrás de si e envoltos numa nuvem de vapor os triunfantes em número cilindro-pistão.
Até se compreende o seu fim: o petróleo era então infindável e barato, e a tecnologia em constante evolução permitia construções cada vez mais fiáveis e também mais leves. Mas, por exemplo, recordo-me, a mulher de Henry Ford nunca utilizou outro tipo de carro, e não tinham o nome do marido gravado.
Em 1973 eu tinha 18 anos e não me lembro, à altura, da história do Gvang. Mas recordo-me do choque petrolífero de então, das bichas nas bombas de abstecimento e na escalada dos preços, dos racionamentos e proibição de abastecimento aos fins-de-semana e - chegou a isso a histeria!, a proibição de competições automóveis. Por isso não me lembro da história do Gvang: soube-a muito recentemente, aqui pela Internet nesta minha demanda louca por fotos de todos os modelos de carros produzidos nem que o fossem no barracão ao fundo do quintal. O Gvang, esse bonito carro desportivo da foto, cumpria em desempenho o que as linhas prometiam: 200 mph, coisa que dá uns bons nicos acima dos trezentos quilómetros por hora, uma aceleração a condizer e potência q.b., tudo tão perfeito que até tinha o bónus adicional de... funcionar a água: o Gvang era um 'steam car', produzido em único exemplar, ao que me lembro, por um neo-zelandês, um Pat qualquer-coisa. Apresentou-o num salão automóvel na Austrália em '73 mas trabalhava nele desde 1968, época balizada nos registos como a do início da sua idealização/construção. Era produzido no tal 'barracão por baixo da árvore' e nunca chegou a ter irmãos.
Bem, e que aconteceu ao Gvang filho único, e a que propósito eu o trago à liça? o único protótipo fabricado e a sua patente foram regiamente pagos por um comprador altamente interessado na revolução que ele prometia: a velha e desconfortável tecnologia dos 'steam car' tinha conseguido, em exemplo visível e prometedoramente circulável, produzir um veículo moderno e apto a ombrear com qualquer outro então em produção, classe dos 'gasolinas', feitos os necessários retoques de aperfeiçoamento do projecto-base. Uma companhia petrolífera, a Shell (mas diz-se que em sociedade natural das 'sete irmãs') pagou ao bom do Pat qualquer-coisa um milhão de dólares pelo chasso e pelos desenhos, mais a licença. Em 1973 um milhão de dólares era muita massa, deveria até dar para comprar um furo de petróleo e ainda sobrava para comprar muitos carros de oito e doze cilindros, a 'beberem' litros e litros de gasolina aos cem quilómetros.
E que aconteceu ao Gvang, que nem se vê nas estradas nem nos museus, nem ele nem sua descendência que, então, parecia ser tão prometedora? não se sabe ao certo. Ao que li há um comunicado meio vago da compradora, uns tempos depois, declarando o protótipo perdido em experiências e o projecto inviável para evolução, face aos 'enormes progressos' que se estavam a conseguir, à época, na redução do consumo nos automóveis. O progresso foi tão grande que é o que se vê: o preço da gasolina caminha para o do whisky a demasiados quilómetros por hora, refastelado na certeza que os 'drogados' já não podem viver sem a sua dose.
Obviamente que o Gvang, como nasceu, estava cheio de problemas por resolver: fabricado por um semi-curioso num 'barracão atrás duma árvore', tendo como base e escola uma tecnologia que fora abandonada há quarenta anos atrás e só sobrevivera em máquinas de caminhos-de-ferro em que mais tonelada menos tonelada era irrelevante, não se podia esperar que ele rolasse como um Cadillac ou um Rolls-Royce, nem sequer um Renault 5.
De 1973 para hoje vão mais trinta anos. Nestes trinta anos a ciência e a indústria evoluíram como não o fizeram nos cem anteriores. O Gvang, a 'tecnologia Gvang' ou seja: os 'steam car', se nestes trinta anos tivessem benificiado do investimento correcto na sua evolução hoje eram uma realidade nas ruas, se calhar na nossa própria garagem. Não o é, não o são: na realidade está é o molho de notas que se larga sempre que se abastece o carro, o ai jesus constante sempre que se lê ou ouve que os combustíveis vão voltar a aumentar. E o saber-se que os biliões de carros circulantes no meio deste século passarão a biliões de sucatas abandonadas quando o petróleo acabar como matéria-prima de consumo. E as 'sete irmãs', então, anafadas em dote acumulado por um século contado aos milhões de barris diários, essas, ou gozam a reforma dourada ou reconvertem actividades e garras noutros pés de dança, longe dos oleodutos. Por exemplo para o Grande Baile do gás já têm todas posição e mesa marcada, prontas para continuar a sua alegre folia ao ritmo de novas músicas.
O Gvang foi assassinado e o cadáver foi ocultado, acuso. Hoje, 2006, com o barril oscilando nos setenta dólares, eu acho que este era um inquérito a ser aberto por uma procuradoria qualquer pois de crime se tratou e cada vez há mais vítimas dele, pelo que não prescreveu. E nem é bem pelo Gvang, coitado: embora bonitinho vê-se à légua que o design é descaradamente copiado de Sant'Agatha de Bolognese - o Miura, da Lamborghini..., e se ele tivesse sido vendido comercialmente como estava os donos passavam tanto tempo no ferreiro como a acelerar vapores. É pelo que o seu desaparecimento nos privou de conhecer a sua natural descendência, de hoje haver brutais massacres e vergonhosas chantagens políticas por causa do 'ouro negro', até golpes de estado e guerras entre países por causa... do petróleo. Acuso. Acuso hoje sabendo que o Gvang é matéria esquecida mas intuindo que daqui a quarenta anos será recordado, e em libelo formal de acusação.
Porque se trata dum crime que ultrapassa o económico esse asfixiar, 'comprar' para silenciar alternativas à compra colectiva da sua droga, a droga das 'sete irmãs'. É inquérito que tem de ser feito pois há responsabilidades a apurar: o 'comprar' algo nem sempre nos dá o poder da sua destruição.
1 Comments:
Vim espreitar as estantes e...já agora, também ver o carrito!
E deixar :))
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