quinta-feira, junho 01, 2006

a minha memória do Liceu António Enes


Há bocado recebi um mail que me provocou uma chuva de memórias em volta da minha fugaz passagem pelo Liceu António Enes de Lourenço Marques, hoje respectivamente Escola Francisco Mayanga e cidade de Maputo.
Veio de alguém que não conheço e que sabendo provavelmente por algum comentário meu aqui pela Internet que lá tinha ‘passeado’, divulga-me um site alusivo e diz que recordações daquele tempo, estórias que são a sua história, são bem vindas.
Na resposta alarguei-me, pois conforme escrevia ia recordando mais e mais... Ficou assim:

“A. J., meu amigo: primeiro quero agradecer-lhe ter-se lembrado de mim como ex-aluno do Liceu António Enes. Não sei se foi pelos sites MSN ou pelo blogue que soube que fui lá (mau) aluno, e acredite-me que muito me sensibiliza este convite. Tenho é um grande problema: como se terá talvez apercebido quando escrevinho recordando o meu passado laurentino, a minha memória do Antº Enes já é bastante difusa e por exemplo digo-lhe que tenho recordações mais fortes da Escola Joaquim de Araújo, para onde 'transitei' após subtil sugestão da reitoria do AE aos meus pais... bem, mas essa é uma das tais estórias que me deixam envergonhado e pelo menos até me dar uma de louco, não a conto a não ser com sentença judicial e sob tortura, perdidos os recursos possíveis eheh

Bem, e vendo melhor, até que me lembro de alguns episódios no AE onde passeei os books dois anos e onde a minha irmã já era ‘dos crescidos’... foi lá à porta, naquele terreno tipo baldio mesmo em frente da escadaria, do outro lado da estrada, que levei um enorme arraial de porrada, provavelmente o maior até hoje, felizmente... uma daquelas estórias entre putos que depois já não se sabe como nem quem começou; mas ficou no ar público aprazado combate fora do recinto da escola e no fim das aulas... o 'incidente' entre eu e o meu algoz deverá ter-se passado logo à entrada ou no 1º intervalo, dedução que obtenho do peito feito que então fiz e lhe mostrei, ao desafiar para umas lambadas 'a sério' um matulão qualquer que me pisou os calos ou eu a ele... na verdade e lembrando-me, conforme as aulas iam passando e a cada intervalo, havia cada vez mais olhares de pena que me eram dirigidos e lá no corredores ou no pátio era apontado a dedo com um olhar de dó e aquela curiosidade mórbida, então já latente em nós, putos e pitinhas, de saber quem era - e ver-lhe a cara..., a anunciada vítima do massacre já apregoado por todo o liceu... é que o outro era - e não estou a justificar o arraial que levei, não!, ele era um bom palmo maior que eu, além de demasiado bem entroncado ao lado do lingrinhas caixa d'óculos, eu. Quando saí e desci as escadas fronteiras eu não imaginava que 'descia' para o cadafalso, eu fazia-o de facto: é que fi-lo entre duas filas de salivantes espectadores e quando levantava os olhos do chão era para ver na outra extremidade, já no tal terreiro, o meu carrasco pronto para a exibição do século: até já estava sem camisa e eu, mesmo míope, já imaginava mais que via músculos a mais para os (poucos) que eu admitia aguentar... bem, como o resultado era já antecipadamente conhecido fui-me logo a ele e - espero que a memória esteja correcta, em defesa da minha honra!...., a 'primeira' foi minha e acertei-lhe. Depois... ok, depois as coisas começaram a correr mal a uma velocidade excessiva, acho que deixei de ver as caras que me rodeavam quando dei a talvez 5ª volta no chão, até que a minha irmã apareceu, avisada por alguma inimaginável alma caridosa de aluno e conseguiu safar-me do maior arraial de pancada que levei em toda a vida. Permito-me aqui fazer uma pausa para repetir o já falado "felizmente".
(na primeira imagem de início vê-se esse terreno; é o mesmo ao fundo desta foto, onde está agora um muro. Na segunda, reparem no tamanho da escadaria neste ângulo e visualizem-me com os olhos do meu pavor naquele momento, cordeiro a caminho da ara onde seria sacrificado em nome da Honra de Macho...)

E do AE onde, sei lá se no 1º ou 2º ano que lá andei, na estrada que passava entre o campo de básket e as barreiras, ao lado duns prédios que ali havia, houve uma explosão de granada e, contava-se, morreu um 'terrorista' que a transportava. Sim, vivia-se no tempo em que o 'terrorismo' era o diabo colonial e a explosão até poderá ter sido por um acidente, algo do género: sabe-se que muitos militares após desmobilizados traziam consigo material de guerra desviado aos direitos, como soe dizer-se. E até quando de férias na 'capital' provavelmente alguns lembravam-se de meter umas 'castanhas' ao bolso, nem que fosse para se armarem aos cucos junto dos amigos do antes-tropa. Bem, sei lá se verdade ou boato, a estória correu então assim e lembro-me de se apontar para umas manchas na parede exterior do tal prédio ao lado do qual a tragédia aconteceu, e para as árvores perto, e apontarem-se as manchas e gritar-se 'sangue', e apontar-se tudo o que fosse susceptível de parecença ou confusão e gritar-se ainda mais que aquilo eram pedaços de carne do 'terrorista'. E se calhar sim, até era sangue e carne do desgraçado que rebentou a ameixa nas próprias mãos. Sei lá. Mas nesse dia já não houve mais aulas e fomos todos mandados para casa. Uma estória do Liceu António Enes, portanto...

Também me recordo dum ‘granda maluco’ que lá havia - há-os sempre em qualquer escola que se preze! e que por via duma aposta, daquelas apostas estúpidas que se fazem quando a parvoíce é a nossa forma de viver "não és homem nem és nada se não fizeres isto ou aquilo", o grande doido saltou da varanda do 2º piso - e se o pé-direito dos andares do AE era pequeno... - para um daqueles pátios com relva que lá havia (e ainda há)... claro que partiu os dois tornozelos e houve peregrinação ao local onde, supostamente mas não contestado por ninguém! viam-se as marcas dos seus pés quando caiu, marcadas na relva. São assim os Heróis, não é? eheh e se nessa idade temos tendência de acreditar em heróis, em imaginá-los como bem reais e nossos conhecidos... da lenda consta ainda que antes do salto que lhe deu acesso aos anais, ele foi-se informar com o prof de ginástica em como se devia 'cair bem' após um salto; e dizia-se em defesa do Herói que ele até fez tudo bem e deveria ter saído da aventura como o novo Vice-Rei da cidade, e incólume, e isso só não aconteceu - o incólume, obviamente... porque ele cometeu o erro xis e o erro ypson, coisa que nós nunca faríamos se um dia nos tivéssemos de submeter a tal prova de masculinidade que nos abriria as portas da glória. E abanávamos a cabeça que sim, todos muito entendidos nessas coisas de saltar dum segundo andar. Já não me lembro do nome do 'herói' mas recordo-me da estória do salto, episódio já da história do LAE.


(na 3ª imagem um dois tais dois pátios interiores; reparem na altura do varandim do segundo andar...)

Lá conheci a Alice, o meu primeiro amor, tal como o conto no Xicuembo sob o título "quando os amores eram perfeitos". E, sabe-se, não há amores como os primeiros, além de que, facto, a Alice era a pitinha mais linda em toda a cidade. Brigava então e brigo hoje com quem o negar. Hoje, gostava de a encontrar e deixar os olhos sorrirem ao recordar os rubores que senti quando ela me olhava, indecisa entre o trocista e o amigável; do terno que era era estar-se perdidamente apaixonado com dez anos, mas ser tão tímido que caso ela me dirigisse palavra morria de facto e de jure de imediato. É bom recordar...

Sei lá como nem porquê, foi no AE que tirei o curso de "chefe de quina" da Mocidade Portuguesa, coisa que me deu muito jeito quando fui emigrado para a J. Araújo e, mui prazenteiramente, livrei-me de marchar na minha turma aos sábados de manhã pois, estúpidos, os de lá quando souberam que era ch-d-q deram-me uma turma inteira (a mim!!!) para 'comandar'... caramba! nunca na Araújo houve malta mais acertada e disciplinada a marchar como a 'minha' turma era, e isto até virar-mos a primeira esquina e em posição de sentido e após rápidos olhares em volta para ver se havia mouros na costa, ouvir-se o mais célere 'destroçar' que as manhãs de sábado da Araújo alguma vez ouviram, por certo... era um ala que se faz tarde e, lá por trás, pelo lado das oficinas, raspava-se tudo o mais depressa possível e havia toda uma manhã de sábado à nossa espera... não podíamos era ficar lá dentro pois 30 putos fardados a passear dava mais nas vistas que a falta duma turma inteira a marchar.
Eu seguia sempre para a Baixa e passava horas com os sonhos colados à montra da Casa Vilaça, vendo os Matchboxes, os Corgi e os Dinky Toys. Ou ia ao John Orr, do outro lado da rua, e chegava a conseguir que me dessem um dos catálogos anuais que essas marcas de miniaturas faziam com fotos das colecções inteiras, que eu lia e relia até materializar em sonhos todos os prazeres que a sua posse (virtual, sim, é verdade; mas que sonhava, isso...) daria/dava. Houve uma altura em comecei a temer que alguém estranhasse um puto fardado andar desenfiado na Baixa à hora em que deveria estar a marchar e a dar ordens de "à esqueerda! o..bli....quaar! 'êrdo, 'êito, óp eis, 'squerdo 'eito, óp eis, 'squerdo!", e tinha uma severa desconfiança que no naquele mundo gigantesco da baixa de LM dos adultos, as minhas divisas de chefe-de-quina não serviriam para me safarem se alguém estranhasse e me inquirisse. Comecei a atravessar a rua para o outro lado mas não julgue, caro A. J., que me escondia nos Correios ou no Scala. Não evito um sorriso quando me lembro que ao fim duns tempos eu já não atravessava a rua para me esconder: quando chegava à Baixa, desenfiado da MP aos sábados de manhã, entrava directo na Biblioteca e alarguei lá a minha capacidade de sonhar anos que, indubitavelmente, eram muito mais propícios e dignos de qualquer outra parvoeira que de... marchar :-(

(finalmente, na última imagem, o edifico meu refúgio ao ‘marchar, marchar’: a biblioteca pública da baixa lourenço-marquina)

Bem, mas esta já é estória dos tempos da Araújo, embora as divisas tenham sido 'ganhas' no Liceu António Enes. Como te disse, do AE lembro-me de muito pouco e não me recordo dos profs, menos ainda dos seus nomes. Talvez haja por aqui uma memória do de ginástica, creio que já com umas cãs brancas e, talvez, com óculos. Bom tipo, eu gostava dele embora fosse um pisso em desporto. Mas ganhei com ele 'tesão' pela ginástica e já não sei se quando fui para a Araújo se ainda no 2º ano do AE inscrevi-me na 'ginástica aplicada' do Ferroviário, onde andei dois anos se não estou enganado. Acho que o prof. era o sr. Abranches, um mulato ex-praticante que tinha um ‘caparro’ do caraças. Andava lá o Agostinho, o Néneco, o Júlio, sei lá quem mais. E o Cândido de Azevedo era então 'star', Cândido que vim a encontrar aqui pelo Ribatejo duas décadas depois (actualmente está em Pequim, após uma data de anos em Macau). Eu gostava da barra fixa e das paralelas e detestava o cavalo de arções e as argolas, já fazia o flique atrás mas nunca dei um mortal sem o 'cinto'.
O que é que mais me lembro do AE? da separação masculino-feminino das salas e dos corredores e que só na zona do refeitório/bar é que havia misturas que se desejavam e se suspiravam: que prazer de expectativa havia naqueles empurrões malandros que se davam na bicha e ninguém fugia à deliciosa confusão de corpos comprimidos contra corpos, havia um brilho especial quando se ia para a bicha das senhas no bar, na demanda do chocoleite e da arrufada... Recordo-me duma sala em anfiteatro que era onde havia aulas de música mas o canto coral era passado a ensaiar 'angola é nossa' e coisas do género... uma seca. Dos campos desportivos: lembro-me bem deles. Sempre preferi o básket e ia mais para o do fundo do pátio, mas, no outro mesmo em frente à porta de trás, talvez a meio do terreno dos pátios, no campo de futebol/andebol que lá havia (alcatroado se bem me lembro), fui elemento equipado duma equipa de andebol que levou uma trepa tal no 1º jogo que nunca mais fez nenhum: o prof. exigiu que a turmas se organizassem em equipas de andebol de sete para um mini campeonato interno. A 'minha equipa' não fez um único treino e, suspeito, todos ou quase todos sabiam de leis do andebol o mesmo que eu: zero. Descobri em próprio jogo que além das mãos não se podem usar os pés (quem diria uma coisa dessas? que raio de ideia, hein! e nem avisaram...), que não há contacto corporal como no rugby e, havendo-o, que o alcatrão é danado para os cotovelos e os joelhos. Ao intervalo já estaria uns vinte-zero, ou coisa parecida. Foi memorável e ainda hoje tenho comichão quando leio uma notícia sobre andebol: há coisas que ficam para sempre, tecnicamente os profissionais chamam-lhe "traumatismos" :-)

Bem, se calhar outro dia recordo-me de mais. Mas acho que não. Como disse ao princípio, A. J., eu mal me lembro dos tempos do LAE. Ah! Há ainda outra estória e que também está no Xicuembo: a da caderneta de cromos dos aviões de guerra! passada com o Jorge que era meu compincha e que era da Matola, e que ficou com o álbum no fim do ano embora tivesse sido feita pelos dois. Esse malando, vim a encontrá-lo num Grupo MSN uns quarenta anos depois e, claro! pedi-lhe contas pela 'nossa' caderneta eheh Nas palavras dele ficou lá, na Matola. Ainda bem, desejo que outro puto tenha sonhado, desfolhado-a.

Um abraço do je”
(obviamente que as fotos foram gamadas na net; sei lá onde ou a quem... 'nacionalizei-as' pois essas imagens também fazem parte do meu passado)

3 Comments:

Blogger Cine-clube Komba Kanema said...

O professor de ginástica deve ter sido o Nuno Abranches, que foi ginasta do Ginásio de Lourenço Marques e da Associação Africana. Familiar próximo da Noémia de Sousa.
Era ou é ainda (há anos que não sei dele) tecnico gráfico numa tipografia em Maputo.
Lembro-me, em miudo, de ficar extasiado a vê-lo fazer exercícios nas argolas e outros instrumentos de ginástica.

Machado

7:02 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Gostei! Eh, pá se ainda te lembras dos gajos que te sovaram, vai ao encontro do AE!... - grande abraço ao kábula, muf'.

2:59 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Carlos Gil,

Muito obrigado por seus textos e suas histórias.

Descobri que você tinha sido aluno do Liceu Antonio Enes por um comentário feito por alguém em um blog ao lado de uma foto da Mocidade Portuguesa.

Há muito tempo que sou fã de seus textos, mas estes me transportaram direto para o "olho do furacão". De um modo geral sua narrativa é fantástica, seus textos têm cor, têm cheiro, têm sons e nos transportam direto para os lugares...Mas, os do liceu trazem um sabor especial...

Me senti na fila do refeitório, na quadra de andebol, correndo nos corredores, no ginásio, na sala de canto coral... Estava lá no dia da granada... O estouro foi infernal, depois fomos em bando olhar o que tinha acontecido exatamente como você descreve...

Você diz que tem uma vaga lembrança do LAE, santas lembranças e que Deus te as guarde antes de as colocar no papel...

Um grande abraço

Antonio Jorge - Rio de Janeiro - Brasil

5:31 da tarde  

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