quarta-feira, abril 12, 2006

o Mestre ensina


CRÓNICA PARA QUEM APRECIA HISTÓRIAS DE CAÇADAS*
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Estou aqui sentado, à espera que a crónica venha. Nunca tenho uma ideia: limito-me a aguardar a primeira palavra, a que traz as restantes consigo. Umas vezes vem logo, outras demora séculos. É como caçar pacaças na margem do rio: a gente encostadinhos a um tronco até que elas cheguem, sem fazermos barulho, sem falar. E então um ruidozito que se aproxima: a crónica, desconfiada, olhando para todos os lados, avança um tudo-nada a pata de uma frase, pronta a escapar-se à menor desatenção, ao menor ruído. De início distinguimo-la mal, oculta na folhagem de outros períodos, romances nossos e alheios, memórias, fantasias. Depois torna-se mais nítida ao abeirar-se da água do papel, ganha confiança e aí está ela, inteira, a inclinar o pescoço na direcção da página, pronta a beber. É altura de apontar cuidadosamente a esferográfica, procurando um ponto vital, a cabeça, o coração
(a nossa cabeça, o nosso coração)
e, quando temos a certeza que a cabeça e o coração bem na mira, disparar: a crónica tomba diante dos dedos, compõem-se-lhe as patas e os chifres para ficar apresentável
(não compor muito, para que a atitude não seja artificial)
e manda-se para a revista. É assim. O problema é que esta, a que gostava de apanhar agora, não há maneira de se decidir. Bem a percebo ao fundo, escondida, reparo num pedacinho do pescoço, metade de um olho, um frémito de pele, mas não sei se é macho ou fêmea, grande ou pequena, triste ou alegre: sei que me espia e não se resolve a colocar a espinha ao meu alcance. Até quando? A mão vibra porque me deu ideia que se deslocou e porém não se deslocou nem isto, continua acolá, irritantemente vizinha apesar de distante, e não posso dar-me ao luxo de desperdiçar um tiro: não tenho mais, e crónicas não são coisas que se peguem de cernelha: com uma sacudidela amandam-nos logo ao chão e vão-se embora: as crónicas e os livros não toleram escritores aselhas, ou precipitados, ou impacientes, desprezam-nos, viram-lhes as costas a troçarem: o que desejam é que tenham mão nelas no momento exacto, e o momento exacto nem um segundinho dura: uma desatenção, um piscar de olhos e adeus, passa bem meu cretino, vai aprender a escrever para outro lado. De maneira que são onze e vinte e quatro da manhã e eis-me a esta mesa
(encostado a este tronco)
de caneta no sovaco, à espreita. Quanto tempo ainda? Um quarto de hora, vinte minutos, uma hora? Talvez menos, dado que não sei o quê em mim estremeceu: sou, ao mesmo tempo, o matador e a presa, é o meu coração e a minha cabeça que busco, ou qualquer coisa no meu coração e na minha cabeça, a sua parte de trevas, de sombra. As trevas e as sombras do António
(finalmente!)
surgem rodeando o papel, param, verificam que ninguém nas redondezas, debruçam-se
(vamos, vamos, debrucem-se mais)
a beber da página e então ergo a caneta, viso, certifico-me que as enquadrei na mira, e aperto os cinco gatilhos dos meus cinco dedos: a crónica cai redonda no bloco, agita a cauda de um advérbio, imobiliza-se. Nesta altura é prudente chegarmo-nos a ela pé ante pé: as crónicas apenas feridas são capazes de nos aleijar com um coice, uma cornada. Aplica-se por precaução a facada de um corte num adjectivo, numa imagem, a fim de acabar com elas. E aí está a crónica quietinha, pronta a ser publicada. Tem os olhos abertos: só quase ao encostar a cara à sua verifico que são os meus. Podem ficar com eles: há quem goste de mostrar troféus aos amigos.
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* in "Terceiro Livro de Crónicas" de António Lobo Antunes, Publicações Dom Quixote.
(imagem recolhida aqui)

3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Um prazer (re)ler!!, obrigada - beijo, muf (e tb gostei da imagem, muito!).

2:51 da tarde  
Blogger Leonor said...

ola carlos.
a imagem está soberba. venho agradecer a tua participaçao no cultural mente e a visita lá no ex improviso.

abraço da leonoreta

9:25 da tarde  
Blogger th said...

Ora aqui está um post digno de um escritor, gostei...th

8:58 da tarde  

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