terça-feira, fevereiro 20, 2007

o fascínio do leitor


Ao ler, o leitor recria a estória por outro contada, ele leitor é-o ficcionista. Quem não ler assim perdeu a capacidade de sonhar, escapou-se-lhe entre a vida o fascínio das 'leituras de miúdo', fossem elas as bd's do Fantasma, Mandrake, "garra d'aço" ou Rick Kirby, Major Alvega ou Ene 3, ou os livros 'de letras'; mais tarde, com esses, vem o melhor: construir um filme único, pessoal, enquanto as páginas do '3 mosqueteiros', 'conde de montecristo' ou 'davy crokett' corriam, sem se dar conta e a gosto entranhava-se o bichinho criativo no sonho, pariam um sonhador: há livros que deveriam trazer um aviso na capa, tal como os maços de tabaco: "ler pode provocar o sonho", "não confunda a vida com uma biblioteca", "ler mata a realidade", e mais gracinhas do género

Serei exagerado no leitor/livros compulsivo que sou (embora já o tenha sido mais, a net...), mas é-me verdade assumida que o meu lado ficcionista vem do sonhador que sou desde que de mim me lembro, assim como me recordo de sempre gravitar em volta de livros: mesmo as 'pistas' que improvisava na sala da casa, para nelas fazer "grandes prémios" de carros desenhados por mim e depois recortados, que empurrava com o dedo, as 'paredes da pista' eram feitas com livros ou revistas de banda desenhada. Acho que até nisso, a mania pelos carros, há uma ligação. As 'semanadas', quando as havia e nunca com periodicidade que justificasse o cognome agora dado por 'facilidade linguística'...) ou o dinheiro do lanche, tanta vez, foram desviados para o alfarrabista na avenida 24 de Julho e a caminho do liceu António Enes, revistas 'antigas' de bd e de carros, por vezes um livro "só de letras": trocavam-se "dois por um" e às vezes desfazia-me de velharias para ir buscar 'novidades imperdíveis'... Em casa havia ainda os da minha irmã, mais velha, e li nesse tempo, por exemplo, o 'Mulherzinhas' e gostei: é, para além do nome, livro para 'elas' e para 'eles' nessa idade; e o meu pai trazia no bolso apontamento dos números da colecção "Os Cinco", Enid Blyton, que me faltavam. Surripiava-lhe os policiais de bolso que conseguia e ia lê-los para a casa de banho, à procura "daquela coisa" e a iniciar-me na masturbação entre litradas de sangue e duplos de whisky, leituras de assassinatos de magnates e com detectives de gabardine, coristas loiras e de fartos peitos e altas pernas, de rouge e lábios vermelhos e meias de renda, menu onírico completo que ainda passava por sórdidos bares na avenida número tal duma tal de Nova Iorque. Lá pelo meio, as tais páginas onde se falava e contava dos preliminares sexuais que, então, me pareciam admiráveis finais e "toca a dar ao bicho"... (mas o post é sobre "o fascínio do leitor", 'tá quieto e deixa isso agora, Carlos)

Um romance é um livro de aventuras. Cada um com o seu ritmo e até, concedo, o seu estilo de 'contá-lo'. Mas se não for "um livro de aventuras" ao ler-se o romance torna-se chato, mais pesado que quaisquer ligeiras folhas que tenha se elas não se tornarem indiferentes a quem as lê; senão a sua presença torna-se pesada, maçadora para o leitor. Elas perdem o seu peso quando "conseguem" e pulam cá para dentro, e das palavras contadas o leitor extrai a matéria-prima para fabricar o seu próprio sonho, cavalgar a toda a folha a estória contada, ele na sela e ali vai à desfilada pela porta aberta às pradarias que o escritor lhe deu. Tenho momentos em que olho um livro recém comprado assim: antevendo, lambendo-me, à espreitadela ao resumo sucedendo-se a avaliação das suas 'possibilidades' criativas, eu leitor já a preparar-me para subir ao palco do exercício da ficção, guloso de tema para mais e mais sonhar: nasceu na BD de puto, cowboys, mágicos e soldados.
Gostava imenso do 'garra de aço': imaginava-me sempre, mesmo maneta mas possuído de tal "poder", a introduzir o indicador metálico da garra nas tomadas eléctricas para pelo choque provocado atingir a invisibilidade mágica, e sempre em dois sítios bem diferentes: numa agência bancária, onde gamava uma nota de quinhentos paus todos os dias, e naquelas zonas misteriosas e interditas do planeta, onde por certo se passavam milagres e se revelavam admiráveis segredos, as casas de banho femininas. Este vai de exemplo quer da capacidade de sonhar quer do seu uso depravado, possível razão de eu hoje ser o que sou, piscador de olho sem-vergonha e sempre à cata de 'quinhentos paus' caídos do céu. Os livrinhos 'de guerra', principalmente os dois que disse, Ene 3 e Major Alvega, eram oportunidade para eu me imaginar herói, daqueles que ficam feridos em combate e tudo, mas não só sobrevivem como, já na penúltima folha, salvam o mundo livre dos maus, nazis e jap's, tudo em minuciosos desenhos onde se viam os pormenores dos Spitfires e dos Stukas, os Hurricane ou os Messerchmidt ou Fockenwulf (será assim? nem vou ver pois o importante era o 'desenho', as 'letras' desenhava-as mentalmente eu...), mais todas as outras armas, os grandes couraçados, Bismarck e Yamato, os submarinos U e as bombas V, ou os canhões gigantes como o 'Bertha' alemão que era fixo num vagão de caminho-de-ferro, tal o tamanho: só poder estar estacionado no lado de cá da Mancha já tirava o dormir aos ingleses... até lá ir o Major Alvega resolver o assunto, está claro.
Era à escolha, era servir-me... dos de espadachim idem idem, aspas aspas, com damas ainda mais misteriosas num frou-frou de rendas e generosos decotes, salões forrados em espelhos onde os cavalheiros também usavam laçarotes, ou tascas não menos sórdidas das tais da rua quarenta e quatro, a tal cidade grande, o mundo antes da televisão. Igual para o Bufallo Bill ou o Ivanhoe, o que era o último dos Mohicanos e qualquer outro, excepção às damas que por aí desiludíam-me e, talvez por isso, mais tarde fui aprender xadrez, by books obviamente. A todos esses livros de heróis e aventuras vestia-lhes a foto da capa e ia por eles adentro, fazia minhas as aventuras contadas e adaptava-as ao mundo que conhecia, ao chão da minha sala e à minha vivência; se o herói beijava a heróina eu suspirava escondido atrás do sofá, nas páginas lendo-me a beijar a miúda do prédio em frente, a tal que me fazia corar sempre que a via, e se eles matavam dez eu matava vinte. O meu avião voltava à pista feito em frangalhos, cheio de buracos e eu a segurar a manete só com uma mão, mas deixava atrás de mim no mínimo meia dúzia de suásticas espalhadas pelos campos sei lá onde nem interessava, símbolos e que depois seriam pintadas no avião como marcas em coronha, tal como fez o "barão vermelho" na 1ª guerra mundial. Os ursos que eu matava em nada desmereciam dos do Davy da boina, já agora acrescento, e para que não restem dúvidas eu ganhava-lhe à larga pois abatia elefantes só com um tiro e com eles à carga para cima de mim, só de leões teria dúzia e meia de cabeças empalhadas na sala da minha memória sonho, lado-a-lado com os carrinhos desenhados e recortados, tudo minúcias em traços filhos das leituras: aquelas páginas eram ouro, uma mina, e hoje continuam a sê-lo se 'bem esgalhadas', se me prendem como seu leitor-vampiro que sou: olho-os, livros, com a gula de quem sabe neles haver segredos em roteiro, depois ligo a máquina e rodo o filme, até logo resto do mundo.

Acho que não sou "um gajo esquisito". Um pouco a puxar para o solitário, admito, mas este abuso onírico em volta dos livros nem sequer será estranho pois a maioria de vocês, leitores, é-o igualmente, sonhador enquanto lê. Daí eu decorrer que me percebem quando conto do "fascínio do leitor" e do dínamo de sonhos que são os livros, e por decorrência do que disso advém: cada um que advogue pró ou contra o sonhar, é que ele nunca tem medida certa...
Quando o Helder Macedo, lá no "correntes de escritas", disse que a realidade é o eco da ficção eu entendi-o perfeitamente, pela primeira vez ouvi em discurso estruturado explicadas as razões do mundo dos ficcionistas não ser senão outra dimensão do mundo 'real', e ele sabe bem em qual passa o seu tempo, em que sofás mais preguiça o seu sonhar. "Os livros têm magia": é slogan antigo e que cheira e soa a lugar-comum. Tão comum o é como é verdadeiro: basta ter acertado ao abrir um, qualquer um, venha ele de Nobel ou do completo anónimo, de 'clássico da literatura universal' com lombadas castanhas e letras em dourado, e ir acompanhando sir Edmund Hillary a vencer o Everest, Crusoé perdido na ilha e 'eu' logo coleccionando canivetes e caixas de fósforos, alicates surripiados à ferramenta do pai, um rolo de fio que nem para um papagaio já dava, mil e uma utilidades secretas que guardava numa caixa de camisas por baixo da cama para, se me calhasse um dia ser 'robinson crusoé' estar prevenido com tanta coisa que certamente seria de prodigiosa utilidade, pelo que lia do que lhe tinha acontecido a 'ele', o protagonista antes de mim... percebem?

Mas repito, e agradeço que não se esqueçam: o meu preferido era o "garra de aço": quinhentos paus no bolso e acesso à arca dos segredos tornavam(am) irrelevante qualquer choque eléctrico à realidade entre mãos, haja um bom livro de aventuras entre elas.


(imagem daqui)

8 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Giro 'post'! - e já agora, oh leitor, aqui há uns tempos um/a das Letras da lusa praça falava na "voz do narrador": alguma vez a ouviste?
Eu não... - beijo, muf'

10:46 da tarde  
Blogger Ana Saraiva said...

Os meus favoritos eram Os Cinco e Os Sete -- não te esqueças!

12:20 da manhã  
Blogger Carlos Gil said...

IO: gira era a 'ideia', que a escrita estava uma bodega: fui 'concertá-lo' no que consegui. Quem? a Inês? acho que ela, essa, falou 'lá' nisso, ou ela ou outra...
e-clair: os sete já aparecem quando eu tinha quase compeltado a transição para os 'de letras', pouco me atraíram em relação ao fascínio que me tinham dado os outros, os 5. Ah! lembrei-me agora: ia espreitar as revistas de fotonovelas, à procura das fotos dos beijos, mesmo se um deles sempre a três-quartos ou até de costas... e os diálogos... ai ai, eh eh
caramba! há é que eu reconhecer que sou e sempre fui um leitor depravado e mais nada eheh!

bjs às duas

12:28 da manhã  
Blogger Carlos Gil said...

.. e o ALA volta não volta fala na "mão que escreve", uma espécie de 'outro' que aí será "o narrador" (mas essa da maõ já é velha, não é disso que tu falas ou que eu me lembro de lá ter sido conversado)

12:55 da manhã  
Blogger Ana Saraiva said...

A Mão é velhíssima, desculpem a intromissão:)

1:22 da manhã  
Blogger Carlos Gil said...

se é! é como escrever sobre 'o nada' eheh
- e-clair, qual intromissão! isto (cx comments)normalmnete é a puxar para o silencioso mas é para abancar e servir à vontade! o taberneiro é um bocado fã do mutismo aqui nesta zona e gosta mais de estar atrás do balcão a avir copos de tr~es e a assar uma chouriça. mas isto é para servir,s ervirem-se, servirmo-nos quando calha e apetece.

bj do je

1:33 da manhã  
Blogger th said...

Quanto a mim a tua escrita me parece mais um dique cujas comportas se abrem numa torrente que nem dá aso a correcções.
As próprias palavras se atropelam, numa cavalgada sem medos...
Mas quem sou eu para opinar sobre um assunto que me passa ao lado!!!
Vocês, escritores, é que teem o dom da palavra.
Eu sou simplesmente a Amiga...th

12:40 da manhã  
Blogger Carlos Gil said...

"...se atropelam, numa cavalgada sem medos..." - esta parte pôs-me a pensar, Th...
(soube que hoje suicidou-se um tipo que eu conhecia, com quem até privei bastante há uns vinte anos atrás. "numa cavalgada sem medos"... o que é o medo, e quanto ele fará cavalgar, mais até do que 'sem' ele... os medos do viver são poderosos, 'cavalgam-nos' até, às vezes)

bjoka e até este fds.

12:56 da manhã  

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