Crónicas de viagem - I
"Foi lá, na fronteira com a França e quando mudei de comboio, que comecei a aperceber-me do Inter Rail, e a identificar'-nos', a fauna do Inter Rail no sul da Europa. No cais e no bar as mochilas de grande volume, com armações em alumínio e cores berrantes, são o primeiro sinal que me guia e me leva a tentar uma aproximação à 'tribo', verificando com grande agrado que ninguém parece reparar especialmente em mim por causa da idade. Mas, mesmo assim, suspiro por encontrar alguém com barbas brancas e uma mochila às costas.
Mais tarde, depois de ter passado o tempo entre cigarros e uma espreitadela ao movimento da rua em frente à estação, duas visitas preventivas às casas de banho e uma primeira miradela aos jornais e revistas à venda fora do meu mundo antigo, fui 'ler' horários dos comboios mas depressa desisti. Ainda mais complicado que os de cá: milhares de números e nomes que não conheço de lado nenhum. Sabia qual o meu, antes de chegarmos a San Sebastian o revisor espanhol foi simpático e veio avisar-me, mais a três miúdos que iam lá em frente na mesma carruagem, que o 'nosso' comboio era na linha F. Meia hora antes da marcada já estava sentado, conferido e reconferido o número da cadeira, e a minha mochila e o saco-cama guardados numa divisão à entrada da carruagem que, não há que enganar, tinha 'valises' em letras bem grandes.
À minha frente e ao meu lado sentou-se um grupo de rapazes de aspecto inglês ou nórdico. Lá, na estação e enquanto fazia as minhas primeiras mini deambulações em 'território estrangeiro', atento a todas as conversas que viessem de grupos da brigada da mochila, percebera que o inglês era a língua dominante. Estes, os da minha cabine, raramente a usavam, embora quando um deles participava nas conversas, sardento e de óculos e que dormitava constantemente, os outros recorriam à língua dos bifes, a universal. A que entre eles falavam não a conseguia identificar. Parecia-me menos agressiva que o alemão, mas, em princípio de tournée após 51 anos de calmaria militante, ainda me era impossível distinguir os sons graves dum sueco ou dum dinamarquês, mais cantado.
Eram dez e meia quando fui até à carruagem-bar, mais para fumar um cigarro que para beber alguma coisa. Antes, aproveitando a embalagem dos meus companheiros que fizeram umas sandes enormes de salpicão, queijo, pepino e regaram aquilo com um molho que não percebi o que era: duma bisnaga, amarelado e cremoso, mas já estou a ver que não identifico quase nenhum rótulo das coisas usuais; senti-o na estação quando fui a uma máquina que vendia snacks e latas, e não havendo 'Nestlés' à venda - verifiquei mais tarde que é marca omnipresente em todo o lado, conforme mais se penetra no centro da Europa - a única coisa que reconheci foram as latas de Coca-Cola; tudo o resto é por dedução e atracção pelas cores, mais nada... bem, aproveitando a happy hour que se instalara, lá abri uma das tupperware-terrinas da Inez e sorvi uma sopa de albroengas com chouriço, perante o mal disfarçado espanto geral. Não lhes passei cartão e até me apeteceu arrotar no fim, para perceberem de vez que, eles, a sandes daquelas, não iam longe. Mas não o fiz, fui lavar a caixa de plástico ao wc e fumar um cigarro rápido entre carruagens, e depois li quatro páginas dum livro que levara. Eles, se liam alguma coisa, era mapas e guias de viagens, ao que eu tivesse visto. E tudo em inglês, não era por aí que ia descobrir-lhes a nacionalidade.
Quando cheguei à carruagem-bar estava uma grande farra em duas mesas ao meio, com um grupo que me pareceu de estudantes mas nada de viajantes do Inter Rail. Já me sentia um veterano (estava em França! em França!) e, naqueles, não identificava os sinais do railtrotter, a roupa não condizia, nem sequer o barulho que faziam. Viajar de comboio cansa, e vim mais tarde a descobrir que são os longos caminhos entre as cidades-cais que se aproveitam para descansar de paragens onde as novidades e o pouco tempo para vivê-las levam a esticar constantemente as noites até se misturarem nos dias, também eles sempre intensos.
Até agora tenho tido uma preocupação obsessiva com os documentos e o dinheiro, e o recordar-me de que tinha trezentos euros escondidos na mochila não me sossegava quanto à carteira que, constantemente, apalpava no bolso do colete. Por isso não me demorei e rapidamente voltei para o 'nosso' cubículo, onde fiz como os outros e adormeci.
Assim que desci em..."
(a belíssima imagem veio daqui)
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