segunda-feira, fevereiro 05, 2007

a seringa (da minha Lisboa)


Contei-o nos blogues (e Grupos MSN) por duas vezes, ambas incluídas no livro "XICUEMBO" quando, a seu 'fim', deixo a ponte entre o 'retorno' inesperado a uma terra de que mal tinha memórias - o "Portugal Continental", e a minha vida cá, os primeiros anos de integração: quando cheguei a Portugal, Janeiro de '76, durante uns dois/três anos fui um consumidor adito de anfetaminas, 'speeds', principalmente do famoso "Preludin" que acabou por ser retirado do mercado pois houve alturas em que um farmacêutico até se espantava se lhe aparecesse pela frente um genuíno obeso a aviá-lo, ainda para mais com receita sem suspeitas na mão... houve mais: os comprimidos de "Profamina", duros como um corno para se desfazerem e serem destilados, o "Mybzal" de má-memória pois da pele vinha um cheiro nauseabundo quando o corpo começava a 'destilar' aquele pobre e mau substituto dos genuínos 'spedds', quando eles começaram a rarear já depois da tentativa de controlar a sua venda com a que nós chamava-mos a "receita-cheque", modelo especial para prescrição de medicamentos que eram considerados estupefaciente, index donde constavam os 'speeds' mais populares, mais uma série de nomes que durante uns tempos até serviu de guia para novas experiências à volta de rótulos que, antes, eram ignorados - assim 'nasceu' o "Mybzal" no nosso 'grupo' de Lisboa: alguém leu que, alguém o arranjou, alguém o picou pela primeira vez - fui eu - e, constatado que nem morrera nem ganhara pintas coloridas, resmungava que "enfim... sei lá... hum... não é mau... humm", foi adoptado e, durante uns meses, passeámos o nosso mybzal-pivete pelo metro e praças de Lisboa.

Às vezes ninguém tinha nada, estava-se em 'bringdawn' e era urgente tomar um estímulo, tentar minorar a ressaca após um dois dias, uma duas noites, a enfiar 'puros' e 'lavagens', a correr as luzes da cidade: leio os que conhecem e conheceram Lisboa, leio a Lisboa deles e neles reconheço cantos que corri mais a outra cidade que nunca conheci pois já cheguei tarde para ela, mas nunca li sobre a 'minha' Lisboa para além do (anos 20? 30? p'raí...) "Memórias de um ex-morfinómano" do Reinaldo Ferreira "repórter X" onde, na primeira leitura - tais primeiros anos - nas suas páginas me revia, 'fazendo' as farmácias uma-a-uma, ao sabor de onde estava no momento ou da escala das em serviço, o conselho de quem antes já lá fora e conhecia tiques e truques da casa, uma 'dica' direccionada ou um impulso quando pisava calçadas novas. Um dia falarei das farmácias, principalmente duma nas Amoreiras, saborosa de estórias em volta. E da margem do Tejo entre o cais das colunas e o embarcadouro do cais do Sodré. Dos jardins. Do conhecer a cidade por base à rede de metro e das farmácias de serviço, uma 'lisboa subterrânea" onde nos conhecíamos todos nem que fosse de vista, e identificávamos de longe e às primeiras vistas se, naquele bairro novo que então se pesquisava, já as farmácias estavam 'feitas' ou apenas visitadas em fortuito, como nós então, incursão exploratória.

Mas às vezes ninguém tinha nada, nem money havia para fazer uma tentativa, e não chegou nenhum salvador. Duma dessas vezes - comigo foram muito poucas mas eram populares e da fama já se ouvira falar -, estava na 'casa' do Artur e do Cerejeira (este verdadeiro sobrinho do Cardeal, também moçambicano mas junkye vindo directo de Amsterdão para a revolução portuguesa, depois conto mais dele), casa que era um apartamento num prédio devoluto que fora ocupado pela fauna que se sabe, caminho que depressa aprendi pois até era a 'metros' dum restaurante onde almocei e jantei por um mês com 'guia' do IARN, naquela praceta ao pé do "Nimas", o prédio já a caminho das traseiras da Gulbenkian. Até havia na porta do do Cerejeira um papel com carimbos a legitimar a 'ocupação', resquícios do COPCON (então julgo que até já extinto) mas que o Cerejeira zelava com estima e devoção: era a nossa 'segurança' de que havia quatro paredes e um tecto. Daí, desse tempo, nasce esta recordação de "a seringa". De quando 'não havia nada', por vezes nem um reles charro de erva, 'folha' ao menos, para equilibrar o desconforto psicológico do "bringdawn" da ressaca do speed, mais o corpo moído por uma correria sem fim enquanto o speed e suas lavagens duraram (as 'lavagens' eram as destilações seguintes à original, esta os 'puros': guardava-se sempre o 'bolo', a massa de cor leitosa que ficava após as primeiras destilações: com dose menor de água - a exemplo se na '1ª' tinham sido 4 ou 5 cc, na 1ª lavagem só se punham 2, 3, etc, - ainda se levava algum speed à seringa quando as horas do primeiro já fugiam), lá, na casa do Artur e do Cerejeira recordo-me bem duma vez ter picado somente água destilada, tal como me lembro doutra em que, não havendo quase nada que prestasse além dum garrafão de vinho tinto e 'sobras' de destilações já fora de prazo de validade, optou-se por meter tudo pelo gargalo baixo, agitar bem e passar de roda: saímos para o passeio aos saltos, era engraçado ver-nos a andar e, como se fossem soluços, de vez em quando um dar um salto quando a mistela 'fervia' um pouco mais no estômago...

Faço linha com a razão por que hoje me lembrei de "a seringa". Com ela, seringa, mantenho-me com forte relação de repulsa desde esse tempo: quando preciso de tirar sangue ou pôr soro olho sempre para o lado e mordo o lábio, e eu sei porquê: a procura da veia, o 'caçá-la', o picozinho de quando a agulha investe, a golfada de sangue que desliza para o interior da seringa, o trabalhar do êmbolo

então seria a sensação do speed a correr a veia, o calor que sobe, não tarda vem o 'flash'

Reinaldo Ferreira, o 'x', pai do outro, conta-o, eu li. E das receitas também. Ao seu tempo mas no meu eu li e identifiquei-me com tanto, as farmácias mais as seringas, mais as emoções. Não me recordo se ele - e emprestei ontem à noite o livro, não posso ir conferir - chegou a, em ocasionais carências "quando ninguém tem nada", injectar apenas água destilada como eu cheguei a fazer e é disso que quero contar neste "a seringa". Pois, a seringa, o 'picar': não era só o conteúdo que o êmbolo depois empurrava cá para dentro via agulha ágil e costumeira, era o acto de 'picar' que também era viciante e, se 'nada' havia para destilar e meter à carícia do êmbolo ao menos satisfazia-se metade do prazer e, picando-nos, havia partes do cérebro que regurgitavam: uma dependência também ao acto, não só pelo conteúdo. Como o conteúdo era simbólico e somente complemento de todos os artefactos que são necessários para se 'picar' - sem nada lá dentro, um líquido, não é nada conveniente penetrar numa veia... - bastava coisa de um cc a cada dos que estivessem para isso. Porque o que contava era a secura de boca enquanto escolhia a agulha (para mim: sempre a 11.4, quando para veias difíceis por calo ia para a 10.5), antes o 'destilar' mas aqui, no exemplo, infelizmente arredado e por isso naquela triste figura de substituição, o preparar o garrote (o cinto das calças depois preso entre a perna e a cadeira, e que se alivia quando o sangue penetrava, triunfante, acessível - belo!

estão a ver? isto, trinta anos depois... por isso nunca mais olhei, por isso tenho sincero dó dos toxicodependentes: não é fácil e há muito mais em jogo que os 'civis' imaginam...

depois o manobrar do êmbolo, dois dedos para o puxar e outros dois a segurar a seringa, um depois solto para empurrá-lo, até ao fim, até pelo fiozinho de vidro se esvair o último pedaço, agora um ligeiro puxar atrás para, com o sangue de novo 'puxado' à seringa, depois injectar qualquer resquício que tenha ficado no tal canal, vidro final antes da mini-agulha afiada em lixas de carteira de fósforos quando ficava romba. Depois o puxar dela súbito, logo um dedo comprimindo a minúscula gota de sangue que emergia, já o 'flash' estoirando na cabeça, sinos e banda a dar sinal para correr a cidade, bebê-la toda em pés e olhos nessa noite, falada e falada e falada sem fim, escrita às vezes, mas sempre em movimento: conheci Lisboa pelo speed, em busca dele, pelo andar infatigável em demanda dele mas também por ele pois ele é insaciável.

Quando não 'havia', cheguei a injectar água destilada, havia "droga" só no acto e preparativos, ilusão que se corporizava noutra dependência. Talvez em '78, parei. Quando consegui o primeiro emprego estável, já em Santarém. Não por estar longe de Lisboa, suas tentações e amigos de lá, das 'farmácias': nada disso. Em Santarém as e os havia, e mal lá cheguei nas primeiras vezes rapidamente identifiquei 'os meus' e, juntos ou a solo, "fiz" as farmácias locais uma-a-uma, então bem mais fáceis que as lisboetas e arredores pois, sem me gabar, eu fazia receitas muito credíveis e que, cá na zona, ainda não eram conhecidas e por isso recebidas com nada disfarçados sorrisos amarelos

(um bloco em branco, folhas de letras de decalque em dois ou três tamanhos e toca a andar: um nome qualquer serve e a morada, na altura, era as usual: uma qualquer da avenida da Liberdade servia pois, à época, nela os médicos eram porta-sim porta-sim, nem os bancos nem os centros comerciais lá tinham acampado e eles debandado; a prescrição era fácil: sempre duas embalagens - ok, levo só uma, depois venho buscar a outra..., e x comprimidos ao dia, nada de exageros; às vezes, em rigor preventivo, até prescrevia alternativa não se desse o caso de o farmacêutico, mal lia "Preludin" pôr-se logo a abanar a cabeça e a dizer que não havia, estava esgotado)

parei porque a mudança de situação pessoal era o pretexto que me faltava para forçar a paragem, o fim: já me sentia desconfortável há muito e só me faltava "uma razão", o pretexto-ânimo adicional para fazê-lo.

Não é fácil a libertação da toxicodependência: além do conteúdo há o êmbolo, e ele brilha como cristal: não tem 'flash' sem que o speed lá corra mas os olhos semicerram-se e brilham quando ele se move, a gota de sangue espreitando. Reinaldo sabia-o, eu li, quer nas páginas quer nas ruas e jardins, nos táxis a caminho da morada da em serviço, na casa do Cerejeira e do Artur que tinha um papel pretensamente assinado pelo Otelo colado na porta para as escadas em ruínas, nas idas a Almada ou a Odivelas à procura de balcões onde ainda não fôssemos conhecidos, no sentar olhando a ponte e o Tejo, costas a vinte trinta metros da multidão que ia e vinha do barco, sentados num montículo de pedras e em volta da destilação. Outras vezes feito em duas partes, nas casas de banho dos cafés, e por causa do tempo e das suspeitas: numa destilava-se e, se tinha demorado mais por qualquer razão, saía-se e entrava-se na do café seguinte, já só para 'a seringa', então injectar. Conheço bairros inteiros assim, pelas farmácias e pelos locais 'bons' para 'chutar'. Campo de Ourique, de lés a lés: vivi lá em duas vezes, logo mal cheguei na Rua Almeida e Sousa, também prédio 'ocupado' mas com as escadas em bom estado, casa da prima Amélia que me acolheu quando "apareci" com a cheia, depois no quartel que fica entre o começo da descida para o Rato e vai quase até à Saraiva de Carvalho, eu e o titular do direito de ocupação, "sargento Moreira", velho conhecido de LM, seus únicos habitantes. Mais Lisboa, menos a nova: nesta perco-me, não conheço nem as ruas nem os prédios, eles não me falam nem me recordam nada... agora, quando vou para zonas do 'então', mude-se o que se mudar e metam vidro em cima de vidro que não se me apagam as memórias quando viro certas esquinas e os olhos procuram os anúncios nos lugares que a memória recorda, aflita obriga os olhos a olharam para lá, confirmativos, eu não sonhei e esta Lisboa existe, Reinaldo também - ele nos "dawns" e eu nos "speeds", eu li e alguém há-de ler este, ela existe e olho-a Lisboa também minha, não consigo mais é olhar o brilho da seringa.

(esta não é a imagem da capa do meu exemplar. como disse emprestei-o ontem e via Google apareceu-me só esta, aqui. quando puder - e se então me lembrar - farei a troca: o meu é uma edição de bolso, ao que julgo recordar-me 'edições colibri')

7 Comments:

Blogger Barão da Tróia II said...

Vou precisr da semana toda para digerir este texto e dar uma opinião mais engraçada, mas por enquanto desejo uma boa semana

10:00 da tarde  
Blogger Carlos Gil said...

:-)

10:40 da tarde  
Blogger th said...

Relato corajoso e sofrido que nos dá a conhecer meandros inimaginados, submundos desconhecidos de tantos e que sem eu querer me deixou triste.
Um beijo para ti, de quem gosto muito, th

11:03 da tarde  
Blogger Carlos Gil said...

não fiques triste Th. assim não 'vale'. e eu um dia teria de contá-lo, tu sabes

11:15 da tarde  
Blogger Carlos Gil said...

...como sabes o que me esqueci de referir: que eu também gosto muito de ti

11:16 da tarde  
Blogger Carlos Gil said...

(aproveito para informar quem aqui vier que a partir de amanhã e até ao final do f-d-s estarei sem net, embora saiba que não resista a, pelo menos uma vez, procurar um cyber-café. mas será raro: também perciso de estar 'sem ela' por uns dias, e este f-d-p de texto cansou-me, ou pelo menos sinto-o mais que o habitual
bjs e abc do Gil/Web, até 2ª)

11:35 da tarde  
Blogger Ana Saraiva said...

Não consigo comentar, embora o queira fazer... descomento, então...

9:58 da manhã  

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