sexta-feira, maio 26, 2006

Outro...


Há bocado escrevi isto e não sei o que é, saiu simplesmente assim. Um princípio dum conto, talvez. Ou mais um que não dá em nada, um talvez mais provável.
Gostei, tive prazer em correr atrás duma ideia e brincar um bocadinho com ela. Depois ela deixou-me e vim a correr escrever, contar:
........................................................
"O Estanislau foi presidente da câmara vinte anos. Quando soube que tinha Alzheimer reformou-se e para se esquecer harmoniosamente das coisas boas e das coisas más, divorciou-se e abriu um bar de alterne. Morreu passados quatro anos via fatal enfarte, tendo sido feito um grande elogio público às suas qualidades de homem público. Em surdina de meias idades muitos houve que lhe gabaram o bom senso privado. Da Revolução saltou do balcão do banco, onde preenchia requisições de cheques e ouvia enternecedoras histórias de incumprimento de reforma de letras, para a cadeira mais alta da cidade. Via eleições, claro está, sendo que se esta é uma das partes bonitas desta e de qualquer estória que folheie a história, não é de longe nem de perto a que lhe garante o acesso aos anais.

Podia começar assim um romance que não se sentiria leitor algum defraudado pelo cartão de visita da primeira página. Mas se o é romance, foi-o o do Estanislau com a Dª Odete, matrona do tasco e encarregada do pessoal que rodava, em levas de loiras eslavas que amavam mais as notas de euros que qualquer outra bandeira e suas colegas e concorrentes sul-americanas, mais morenas e ladinas e com falares que eram cantares de sereia ansiosa por ser fecundada: houve uma altura em que saíam da má vida directamente para colos de Mercedes, ao (seu) volante atenciosos choferes que se viam futuros papás numa altura da vida em que há que pegar ou largar. Era isto que pensava Matias, reformado bancário, enquanto mirava de esguelha o balcão onde, em calma conversa daqueles meios de tarde em que o Sol evita ócios de rua e é perfeito olhar as garrafas alinhadas, a meia luz, o ‘barmem’ de sempre que é amigo de sempre, ao lado um antes desconhecido que, milagre tão natural naquele entardecer!..., comunga de todas as grandes opiniões que há que confidenciar sobre a Vida, o Universo, e assim a cerveja cai perfeita e o grande e perfeito Nada emerge. Gastava a reforma nestas tardes e neste observar e pensares.

Ser-se presidente de câmara tantos anos traz vantagens pois há uma altura em que ninguém nos imaginará a fazer outro trabalho e, assim, também ninguém estranhou que quando se reformou o Estanislau não voltasse ao Banco, onde, igual tempo atrás, ele e o Matias foram colegas na secção de letras da sucursal local, uma já grande pois era a capital do distrito e dela dependiam organicamente muitas agências locais. Noutros tempos, que hoje as ordens vêem da capital e desta muitas vezes hesita-se em apontá-la no mapa. A globalização, dizem. Via isso e porque foi num tempo em que as letras ainda não tinham perdido popularidade e trocavam-se alegremente como se de cartas de jogo se tratassem, era frequente virem ‘à sede’ problemas que as agências não conseguiam resolver seja por escolhos naturais de vidas comerciais agitadas, então muito frequentes, seja pelos valores que exigiam análises mais (des)responsabilizantes caso a coisa desse para o torto, então e como hoje e sempre o pesadelo mais comum dum bancário e, supõe-se, igualmente dos banqueiros, esses grandes clientes e accionistas de não menos anafadas companhias de seguros.

Portanto quando o casal Elsa e Luís Martins lá entrou, casados em comunhão de adquiridos e sócios-gerentes duma empresa em que eram os únicos empregados e tinha problemas contabilísticos com as despesas de representação, e pediu para falar com alguém ‘das letras’ por causa duma proposta que estava pendente, ninguém estranhou e, respondidos de onde vinham e feito um telefonema interno subiram ao primeiro andar acima do “marmoramente majestático” hall e grande sala de atendimento. Então fora ele, Matias, que ao balcão e com rápido olhar pelo vidro redondo transparente mas mirando o contorno do corpo de Elsa pelo opaco, os atendera. Ela era bonita, naqueles trintas e tais que fazem refulgir uma mulher, preparada para dar luta aos ‘entas’, sem imaginar a fogosidade dos quarentas e a ternura dos cinquentas… Adiante, que a conversa agora é outra.
E adianta-se que a Elsa é irmã da Dª Odete, sua mais velha e avalista num crédito hipotecário em incumprimento. Enfim, a Elsa sorria como se estivesse num casting e o Luís suava como quem não tem um tusto no bolso e os credores a rondar a perna. E era verdade, da aprovação daquela livrança dependiam muitos desafogos além de quinze dias longe daqui e há muito prometidos. Ora o Estanislau, quando a política o deixava trabalhar, gostava de se preocupar com as questões sociais e esmerava-se no atendimento de possíveis eternamente gratos futuros eleitores: sempre fora visto como um rapaz esperto e a sua ascensão na política local já era assunto em jornais e mentideros, tardes como aquela em que se corta na casaca do mundo e do vizinho, ou simplesmente olha-se para as moscas, também elas extenuadas em vontades pelo calor.

O Matias recordava-se que a conversa fora longa e que fora por via disso que ele se foi aproximando, até que o Estanislau entendeu por bem pedir-lhe a ele conselho técnico sobre que mais papéis eles haveriam de apresentar para ‘desenrascar’ a situação, coisa habitual a quem depois de dar a cara e os apertos de mão soltava o dossier na secretária mais próxima pois, infelizmente mais uma vez, ia ter de fazer trabalho político e não podia vir ao banco durante uma semana. Muitas, muitas vezes, até que foi para presidente da câmara e, aí, não precisou de faltar mais pois, ora serviço público, uma constante dos seus mandatos foi a germinação da cidade com todas as que se pusessem a jeito, se possível exóticas e de amenas estadias. Bem, foram apresentados e ele herdou o dossier da Elsa e Luís Martins, casados em comunhão de adquiridos e sócios-gerentes duma empresa que tinha graves problemas de tesouraria e duas bocas para alimentar. E da já então "Dª Odete", pois uma senhora trata-se sempre por senhora, principalmente quando se percebe que ela é a única com juízo numa trindade cliente assídua de letras protestadas e, até já disso havia na conta da empresa, cheques devolvidos por falta de caroço. Lá se arranjaram os papéis, e os comícios eleitorais do Estanislau ganharam adeptos de fidelidade eterna.

Numa vez em que soube deles, anos depois e já o Estanilau governava cheio de energia, contaram-lhe que após o costumeiro divórcio cada um vendeu os tarecos que sobraram, e a Dª Odete, então já respeitável solteirona danada para a brincadeira e de olho vivo e moral ligeira, recolhia as benesses da expansão comunitária e importava alegremente brasileiras a cada seis meses, altura em que ia lá passar uns dias de férias e renovar stock minimamente documentado e elegantemente ambicioso para uma temporada enriquecedora na velha Europa, esse destino mítico a quem pensa no azar da puta da vida, quando nasceu. Enfim, safava a vida tentando fugir a braços baratos demais quando a alugavam. Depois, novamente daí a anos deste ouvir falar, viu-a no parque de estacionamento em frente à Câmara: pararam os carros quase lado a lado e ao mesmo tempo, o que levou a que viessem a cruzar passos no caminho até à máquina das moedas. Os óculos escuros dela combinavam bem com o vermelho dos lábios, melhor ainda tudo combinava bem naquele vestido de verão, florido e generosamente aberto à alegria estival dum corpo animal, que o grita numa sensualidade em pontas. Ela reconheceu-o, e por certo recordou-se de onde o conhecera também. Foi luminoso o estender dum convite sorrido, o quente das palavras foi amigável quando o abordou e se identificou, fazendo-o engasgar-se na sua notória admiração avaliadoramente predatória. As palavras foram pouco mais que as habituais naqueles reencontros, mas antes de ela subir a escadaria para os gabinetes e ele mergulhar na secção das licenças ainda lhe contou tudo o que ela quis saber, penas alçadas tanto inábeis como vistosas no seu bailado vaidoso.

Duas moscas levantam voo simultaneamente e zumbem urdindo incursões que lhes retomem instintos. Ao balcão a conversa já passou o clubismo e o futebol, e discutem-se outras soluções mais prementes para o Grande Mal que grassa lá fora – e eles ali naquela tarde sem ar condicionado, ambos Messias desperdiçados e injustiçados. Matias seguiu-as, atento, tal o fenómeno de movimento quando tudo está previsível e lento, morno até no recordar. O Estanislau era recorrente naquele recapitular da vida onde deitava o ócio da reforma, esse ópio que o conduzira a um tempo sem tempo, um nada constante excepto cafés e moscas, e conversar o vivido. "
..........................................................
Como disse deu-me prazer e há partes prometedoras para 'esticar'. Fica; e mostro-o aqui, contente por tê-lo feito.
( o 'lp' estava aqui. Não resisti à imagem, memórias!..., e trouxe-o para cá)

1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Que prazer reencontrar o Gil que mais admiro: obrigada!! - beijo feliz, muf'.

1:54 da manhã  

Enviar um comentário

<< Home